sábado, 5 de abril de 2014

A Origem Divina e o Princípio da Causalidade




A ORIGEM DIVINA E O PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE

(Publicado na Revista Internacional de Espiritismo em dez. 2013)
                  

                  A importância da questão sobre a origem de Deus está ligada ao fato desta pergunta ser feita muitas vezes. Aparece frequentemente como um desafio aos que creem, como se a resposta não pudesse ser elaborada de maneira satisfatória.
                  Para responder a esta indagação, vamos fazer outras perguntas, por exemplo: Deus tem uma extensão? Uma altura? Um peso? Acontece que estas perguntas não fazem sentido para Deus. Em outras palavras são perguntas que não podem ser feitas, pois servem para explicar o universo material e não Deus, porque Deus é outra coisa. Como assim, outra coisa?  No Livro dos Espíritos, questão 27, os Espíritos nos explicam que existe um princípio que abrange tudo o que se chama realidade, a Trindade Universal, composto por Deus, os espíritos e a matéria: Deus, espírito e matéria constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade universal” apesar de estarmos, como pensou Kardec, imersos na divindade[1], o interessante é que Deus não se confunde com os espíritos muito menos com a matéria, Sua natureza é outra. Os próprios Espíritos definiram Deus apenas através de seus atributos e não pela sua essência: “Deus é a inteligência suprema e causa primária de todas as coisas” [2], e a essência de Deus nos é interditada: “Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus”? Não...[3], Kardec também escreveu: Impotente para compreender a essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais do que uma ideia aproximativa, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas...” [4].
                   Fica claro então que não podemos entender a essência de Deus, muito menos, querer desvendar este mistério usando princípios que servem para compreendermos a nossa realidade. Desta maneira, a pergunta inicial, de quem criou Deus, também não faz sentido, pois esta pergunta nos remete a um princípio igualmente próprio do mundo criado, o princípio da causalidade. Para Deus ter uma causa seria necessário que Ele fosse do nosso mundo, mas então não seria Deus.
                   Para explicarmos melhor a questão de Deus, não pertencer ao nosso mundo, vamos lembrar a Teoria do Big Bang. Segundo esta teoria, não é somente a matéria/energia que teria começado a existir aproximadamente a 13 bilhões de anos atrás, mas o próprio tempo. Portanto, se Deus é a causa primária de todas as coisas, Ele deve estar fora do tempo e do espaço e não precisa de causa, mais uma razão para a pergunta “quem criou Deus?” ser absurda. É sugestivo o comentário de Kardec a pergunta 240 do Livro dos Espíritos: “Os Espíritos vivem fora do tempo como o compreendemos” o que se dirá então de Deus.
                   Nós compreendemos então o contra senso que é usar o princípio da causalidade para Deus, entretanto, a causalidade pode perfeitamente ser usada para as coisas criadas, como o universo, tanto é assim que o Espiritismo apoia-se neste princípio para dar sustentação lógica a crença em Deus: “Num axioma que aplicais às vossas ciências. Não há efeito sem causa. Procurai a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão responderá” [5].
                   Alguns inimigos das ideias espíritas, não contentes em fazer a pergunta de quem criou Deus, na tentativa de embaraçar os que Nele acreditam, tentam como alternativa, desqualificar o próprio princípio da causalidade usando especulações advindas da Física Quântica.
                    É sabido que alguns fenômenos quânticos, ou seja, das partículas subatômicas, não podem ser entendidos, até o momento, em termos de causa e efeito, preponderando à probabilística ou a incerteza. O comentário do matemático Von Neumann[6] em 1932 continua atual: “Só em escala atômica, nos processos elementares, que a questão da causalidade pode realmente ser discutida; mas, nessa escala, no estado atual de nossos conhecimentos, tudo está contra ela, porque a única teoria formal que se ajusta mais ou menos à experiência é a mecânica quântica, e esta está em pleno conflito lógico com a causalidade” [7].
                   Para respondermos ao grande matemático vamos lembrar a conhecida causa material Aristotélica. Numa estátua de bronze, a causa material é o próprio bronze, ou seja, a matéria que ela é constituída. Em outras palavras, para aquela estátua existir é necessário o bronze. Desta forma, para os fenômenos quânticos existirem é necessário haver as partículas subatômicas, sem estas partículas não existiria nem a Física Quântica e nem a realidade que nos é familiar. A grande questão é de onde vem o bronze da estátua e não a imprevisibilidade quântica, imprevisibilidade esta que reflete como bem disse Von Neumann, simplesmente o "estado atual", portanto, passível de mudança do conhecimento humano. Além disto, a Física Quântica está longe ainda de uma verdade definitiva sobre a realidade e consequentemente sobre a causalidade, tanto é assim que Richard Feynman (1918-1988) um dos físicos mais proeminentes do século 20 escreveu: “Eu acho que posso dizer seguramente que ninguém entende a mecânica quântica. (...)” [8].
                  Mas vamos tentar responder da onde vem o bronze da estátua, será que vêm dos átomos? De uma energia, outra dimensão, universos paralelos, singularidades?[9], mas de onde vêm estas coisas? Desta maneira, não importa o quanto distante formos ou mirabolante for a teoria apresentada, nunca fugiremos da problemática da origem última, já que o nada não pode produzir algo, pois se produzisse deixaria de ser o nada, então uma causa última geradora de tudo se impõe de maneira absoluta, como fica claro no Livro dos Espíritos: Duvidar da existência de Deus é negar que todo efeito tem uma causa e avançar que o nada pôde fazer alguma coisa[10].
                   Vemos desta forma que o famoso pensamento espírita: “Todo efeito tem uma causa”. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito[11], nem sequer é arranhado em seu fundamento lógico profundo, continuando completamente atual, para desespero dos que desejam que a causalidade seja assunto ultrapassado.

FAUSTO FABIANO DA SILVA


BIBLIOGRAFIA
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São Paulo: Ed.  Lake, 2007.
KARDEC, Allan. A Gênese. Disponível em <http://www.febnet.org.br/ba/file/Obras%20B%C3%A1sicas/ge.pdf> Acesso em 17 de setembro de 2013.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5.ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007.
OLIVEIRA, Adilson. Onda ou Partícula? Uma questão de interpretação. Disponível em<http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/fisica-sem-misterio/onda-ou-particula-uma-questao-de-interpretacao> Acesso em 17 de setembro de 2013.






[1] Allan Kardec escreveu no livro A Gênese, capítulo II, item 24: “a natureza inteira mergulhada no fluido divino”.
[2] Questão número 01 do Livro dos Espíritos
[3] Questão número 10 do Livro dos Espíritos
[4] Item 22, capítulo II do Livro A Gênese de Kardec.                

[5] Questão número 04 do Livro dos Espíritos.
[6]Von Neumann é considerado um dos mais importantes matemáticos do século XX.
[7]Comentário retirado do item “causalidade” do dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano.

[8]  Frase de Richard Feynman encontrada no texto “Onda ou Partícula? Uma questão de interpretação” do Físico Adilson de Oliveira, professor da Universidade Federal de São Carlos.
[9]Em cosmologia, singularidade é a região do espaço-tempo onde as leis da Física atualmente conhecidas entram em colapso e as equações perdem o seu significado.
  
[10] Idem ao item 05.
[11]Frase encontrada no início dos 12 volumes da Revista Espírita correspondentes aos anos de 1858 a 1869.

Vínculos com o Cristianismo



                                                                VÍNCULOS COM O
                                                                   CRISTIANISMO
                           (Publicado na Revista Internacional de Espiritismo em maio de 2011)

Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos.[1]


                   Esta frase do Espírito de Verdade é muito sugestiva e diz que as coisas devem ser inseridas, interpretadas e restabelecidas, num novo e verdadeiro sentido. E quem, senão os espíritas seriam os melhores qualificados para tal missão? Afinal, das muitas visões de mundo que um indivíduo pode ter, a espírita é aquela que mais se aproxima da Verdade.
                   Esta nova visão espírita, mais abrangente, mais profunda, é claramente demonstrada, por exemplo, no conceito que Allan Kardec fazia das palavras, cristão e Cristianismo. Observemos algumas afirmações de Kardec: “Suas conseqüências morais são todas no sentido do Cristianismo” [2], e “A caridade é, em tudo, a regra de proceder a que obedecem. São os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos” [3] e finalmente neste trecho: “... surge uma nova geração, cujas crenças serão fundadas no Espiritismo cristão”.[4]
                  Será que Kardec utilizou, nas frases mencionadas, o termo “cristão” e “Cristianismo” no sentido tradicional do termo, ou seja, vinculados a teologia cristã encontradas comumente nas religiões evangélicas? É claro que não, pois na Doutrina Espírita não há a crença, por exemplo, em Adão e Eva, Dilúvio, Batismo, Santíssima Trindade, Juízo Final, Inferno e Penas Eternas. O que nos leva para a conclusão da construção de um conceito próprio, derivado da concepção espírita da realidade. Não se trata de inventar um conceito do nada, mas pinçar as partes, que para os espíritas, são fundamentais.
                    Esta construção, de conceitos, idéias ou valores, também é encontrada em outros autores espíritas, como Leon Denis. No seu livro “Cristianismo e Espiritismo”, por exemplo, encontramos a palavra, “cristãos”, desvinculada claramente de questões teológicas. Vejamos: todos os que amam a Humanidade podem dizer-se cristãos, mesmo quando se achem divorciados da tradição de todas as igrejas”.[5]
                    Para Allan Kardec, Leon Denis e para todo verdadeiro espírita, ser cristão é quem pratica a caridade, ou quem ama o próximo, reduzindo o Cristianismo a sua parte moral. Sobre isto é bom lembrar o filósofo José Herculano Pires:

Ou voltamos à simplicidade lógica e à pureza espiritual do Cristianismo do Cristo ou teremos de voltar à selva para recomeçar a experiência falida de dois mil anos de sofismas, vaidade e ganância desenfreada[6]
                    Conclui-se que os espíritas e a Doutrina Espírita são cristãos somente quando se abandona antigos conceitos e se assume a responsabilidade em dar ares novos a velhas estruturas de pensamento, como fica evidente outra vez nesta frase de José Herculano Pires:
Em conseqüência, leis e perspectivas novas aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho do Cristo e nas obras de Kardec.[7]
                  A constatação que o próprio Allan Kardec tenha denominado o Espiritismo e os espíritas de cristãos, é importante para fazer frente a afirmações como esta, retirada de uma revista de circulação nacional e até apoiada por alguns espíritas.
O Espiritismo não é uma religião “cristã”, diz Antonio Flávio Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores estudiosos da religiosidade brasileira. “Os espíritas utilizam o Cristianismo para se legitimarem.” Pierucci vai mais longe. Afirma que esse vínculo com a Igreja Católica pregado pelos espíritas serviu, durante décadas, para lutar contra a discriminação: “O Espiritismo faz força para não parecer uma religião exótica.[8]
                   Observamos que este professor, apesar de ser um grande estudioso da religiosidade brasileira, parece não ter a noção que, através do estudo do Espiritismo nós resgatamos o verdadeiro entendimento do que seja cristão: aquele que ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. A falta de um estudo metódico, profundo e prolongado da Doutrina Espírita põe em xeque muitas vezes, a autoridade das teses e afirmações de origem acadêmica.
                   Há de perguntar se o próprio Kardec (que não era brasileiro) estava só querendo legitimar a Doutrina quando escreveu tantas vezes a palavra: “cristão e Cristianismo”. Fica claro que o vínculo com o Cristianismo é inerente a Doutrina Espírita e não foi uma invenção dos espíritas para lutar contra a discriminação.
                  O vínculo com Jesus, na Doutrina Espírita, não depende deste ou daquele movimento espírita, para termos uma ideia, encontramos 587 palavras “Jesus” e 217 palavras “Cristo” nas Obras Básicas totalizando 804 referências a este espírito, assim distribuídas:[9]

OBRAS BÁSICAS
JESUS
CRISTO
TOTAL
Livro dos Espíritos
44
23
67
Livro dos Médiuns
20
13
33
O Céu e o Inferno
34
25
59
Evangelho S. Esp.
258
103
361
A Gênese
231
53
284
TOTAL
587
217
804

                    Notamos, observando a tabela, que a Doutrina Espírita está irremediavelmente ligada a Jesus e que Allan Kardec e os próprios Espíritos Superiores não o dispensaram como, equivocadamente, fazem alguns espíritas hoje em dia, para tentar resolver problemas no movimento espírita, a saber: a redução do Espiritismo a um evangelismo místico, com pouco espaço para as obras de Kardec e muitas vezes com assuntos estranhos a Codificação. Estes espíritas acertam na localização do problema, mas erram na administração do remédio. Ora, se há o perigo, dizem, do Espiritismo, com Jesus, se tornar apenas mais uma religião, por outro lado, sem Jesus e o aspecto religioso da Doutrina, há um risco ainda maior, o da Doutrina Espírita se tornar apenas mais uma Filosofia, entre muitas que empoeiram as bibliotecas, restritas a um mundo acadêmico.                                
                    Mesmo para aqueles que se apegam ao conceito de Cristianismo caracterizado por dogmas e formas exteriores de culto, um fato inegável é ser a figura de Jesus, obrigatória, tanto para o Cristianismo como para o Espiritismo (cada um por suas próprias razões) revelando por isto algo em comum, um vínculo. Digo obrigatória, pois, sendo Jesus, “o mais perfeito modelo”, (L.E pergunta 625) isto já lhe dá um caráter não opcional, não é por acaso, então, encontrarmos tantas referências a Jesus Cristo nas Obras Básicas.
                   Nós somos livres para decidir. Assim, podemos optar pelo mesmo pensamento de Kardec, em conformidade com o Espírito de Verdade, e afirmar que a Doutrina Espírita é cristã, subentendido a roupagem que o Espiritismo dá a esta palavra quando resgata seu sentido original e mais verdadeiro, ou afirmar que a Doutrina Espírita não é cristã e nem tendo com o Cristianismo nenhum vínculo. Se optarmos pela segunda alternativa, estaremos negando a nossa responsabilidade como agentes de transformação, se aliando a conceitos que nos vem de fora, esclerosados pelo tempo, acorrentados pelo peso das tradições humanas. Que pena.

FAUSTO FABIANO DA SILVA (pesquisador espírita em Londrina – Paraná)



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São Paulo: Ed.  Lake, 2007.
KARDEC, Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo. 85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.
KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Araras: Ed. Instituto de Difusão Espírita.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 25. ed. São Paulo: Ed. Lake, 2007.
KARDEC, Allan. O Espiritismo em sua versão mais simples. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/19473507/o-Espiritismo-Em-Sua-Expressao-Mais-Simples> Acesso em 14 de março de 2011.
DENIS, Leon. Cristianismo e Espiritismo. Disponível em: <http://www.luzespirita.com/livros/leondenis/cristianismoeespiritismo.pdf.> Acesso em :14 de março de 2011.
PIRES, J. Herculano. Revisão do Cristianismo. Disponível em: <http://www.espirito.org.br/portal/download/pdf/revisao-do-cristianismo.pdf > Acesso em 14 de março de 2011
PIRES, J. Herculano. Espiritismo Dialético. Disponível em: <http://www.bvespirita.com/Espiritismo%20Dial%C3%A9tico%20%28Jos%C3%A9%20Herculano%20Pires%29.pdf> Acesso em 14 de março de 2011
SUPER INTERESSANTE. Espiritismo. São Paulo: Editora Abril, númer


[1]  Allan Kardec. Prefácio do Evangelho Segundo o Espiritismo
[2]  Allan Kardec. O Que é o Espiritismo, capítulo primeiro, pequena conferência espírita
[3]  Allan Kardec.  Livro dos Médiuns, primeira Parte, Cap. III – Do Método – Item 28, 3.
[4]  Allan Kardec.  O Espiritismo em Sua Versão Mais Simples, resumo do ensinamento dos espíritos
[5]  Leon  Denis. Cristianismo e Espiritismo, conclusão.
[6] José Herculano Pires. Revisão do Cristianismo, capítulo: a herança mágica.
[7] José Herculano Pires. Espiritismo Dialético, o velho e o novo.
[8] Revista Super Interessante da Editora Abril, edição 180 de setembro de 2002.
[9] Contagem feita por mim tendo por base as Obras Básicas disponíveis no site da FEB. As Obras Básicas estão no programa Adobe Reader, o que facilitou em muito a localização das palavras. Os índices e as notas de rodapé foram desconsiderados na contagem. Quando do aparecimento das palavras “Jesus Cristo” juntas, contou-se apenas uma delas. Se houve algum erro de contagem, foi mínimo, além do mais, se formos incluir as palavras, “cristão”, “cristianismo”, “mestre”, “messias” e referências indiretas a Jesus como “amor ao próximo” e “evangelho” seria bem mais que 804 menções a Jesus Cristo.