sexta-feira, 14 de setembro de 2018


A não sacralidade do conhecimento espírita



                    É de conhecimento daqueles que estudam o Espiritismo, a diferença entre a resposta 86 da primeira edição do Livro dos Espíritos e a resposta da questão 344 das edições posteriores. Na questão 86 encontramos:  “Em que momento a alma se une ao corpo? Ao nascimento” e depois continua: “Antes do nascimento a criança tem uma alma? R: Não” (1) e na questão 344: “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até ao instante em que a criança vê a luz...”.
                 Vejamos que a primeira resposta, pode parecer não suficientemente clara. Provavelmente, quis dizer que a criança, antes de nascer, não tinha uma alma porque o espírito não está totalmente reencarnado, já que os laços com a matéria, nesta fase, são bastante frágeis.  Se eu entender que a criança realmente tem uma alma somente quando o processo reencarnatório se completou, então, antes de nascer, de certa forma, a criança ainda não tem uma alma. É muito mais uma questão de ponto de vista do que um erro. Porém, é inegável que a segunda resposta é melhor, porque deixa menos margem para dúvidas. 
                   Algumas pessoas podem estranhar que a melhor resposta tenha aparecido apenas na segunda edição do Livro dos Espíritos, se perguntando, o porquê, dos espíritos superiores não terem corrigido a questão desde o princípio. A dúvida se justifica, quando sabemos que a primeira edição do Livro dos Espíritos não foi um rascunho, mas um livro que contou com a revisão por parte da espiritualidade. Sobre isto, nos prolegômenos deste primeiro livro (2), encontramos o seguinte comentário dos espíritos:  “Teremos de revê-lo juntos a fim de que não encerre nada que não seja a expressão de nosso pensamento...”.            
                   Esta aparente contradição, entre a assistência dos espíritos superiores e a resposta da questão 86 já mencionada, obviamente, é usada pelos opositores do Espiritismo para tentar criar um ambiente de descrédito, ou desconfiança em relação a Doutrina Espírita. Por isto, a importância dos espíritas se posicionarem de maneira inteligente sobre o tema.
                   Primeiramente, precisamos enfrentar esta questão com tranquilidade, pois Kardec escreveu, no livro A Gênese, no capítulo primeiro, Caráter da Revelação Espírita, item 55:   Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.  Ora, se o próprio Codificador, falou com todas as letras, que poderia haver erros em um ponto qualquer, não somos nós, então, que vamos se escandalizar por isto.  Mas como pode existir erros, ou respostas que necessitem de maiores esclarecimentos, se o Livro dos Espíritos passou pelo crivo do Controle Universal do Ensino dos Espíritos mais a revisão dos espíritos superiores?
                  A resposta mais plausível é que o controle universal, como método de pesquisa, não era infalível, as diferenças entre as respostas estudadas provam esta hipótese. Como o Espiritismo tem um viés científico (3), nada mais natural, Kardec, ter pesquisado melhor a problemática da união do espírito com o corpo na ocasião da reencarnação e melhorado a resposta em edição posterior. Ao que parece, os espíritos superiores, na revisão que fizeram, respeitaram muito o papel de Kardec na produção do conhecimento espírita. Os espíritos superiores revisaram ou leram outra vez o Livro dos Espíritos antes da publicação, porém, isto se deu, obedecendo um critério principal, tanto na primeira como na segunda edição do Livro dos Espíritos e demais Obras Básicas:  não revelar o que Kardec teria que descobrir através do seu próprio trabalho. Na Doutrina Espirita, no geral, somos nós que devemos encontrar a verdade pois ela não virá de maneira passiva, ao nosso encontro.
                  Então, houve sim, um distanciamento da parte dos espíritos superiores em muitos assuntos, principalmente os de cunho técnico ou científico (4), que o homem teria que aprender a sua própria custa, por si mesmo, pela razão e pela pesquisa, por isto, a possibilidade de erros nestas áreas sejam maiores.  Sobre esse distanciamento, esta frase de Kardec do livro A Gênese, capítulo, Caráter da Revelação Espírita, item 50 e 60 respectivamente:   Os Espíritos não ensinam senão Justamente o que é mister para guiar o homem no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o que ele homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência à sua custa” e “Os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo e das pesquisas o homem, nem para lhes transmitirem uma ciência pronta. Com relação ao que o homem pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue as suas próprias forças”. Também no Livro dos Médiuns, capítulo XXVI, Sobre as invenções e descobertas, item 294 “que mérito teria ele, se não lhe fosse preciso mais do que interrogar os espíritos para saber tudo? ”. E mais adiante, ainda no Livro dos Médiuns, no capítulo XXVII, item 30, pergunta 10, uma frase do Espírito de Verdade:  “Desejais tudo obter sem trabalho. Sabei, pois, que não há campo onde não cresçam as ervas más, cuja extirpação cabe ao lavrador...”.  
                 Fica claro nestas frases a responsabilidade dos homens na produção do conhecimento. Não podemos considerar o Espiritismo uma exceção a esta postura geral dos Espíritos. Portanto, a Doutrina Espírita, teria que vir ao mundo do mesmo modo.
                   Nunca o assessoramento por parte dos espíritos superiores foi no sentido de sacralizar a Doutrina Espírita. Se isto ocorresse, nós teríamos as Obras Básicas inspiradas pelo Espírito de Verdade da mesma forma que a Bíblia é considerada inspirada pelo Espírito Santo. Se assim fosse, o Espiritismo se aproximaria por demais das correntes tradicionais do pensamento religioso, dos dogmas e da fé cega. Porém, a Doutrina Espírita teria que ter um caráter diferente, para poder dar uma resposta satisfatória aos novos paradigmas da Ciência, da Filosofia e dos costumes, apta a responder aos anseios das novas gerações. Por isto, as conclusões teriam que vir pela observação, pela análise dos fenômenos, onde o erro é admissível em algum ou outro ponto (5), onde o conhecimento espírita pudesse, se aprofundar, melhorar, e se corrigir se fosse preciso.
                  Seja qual for a revisão, assessoramento ou aproximação que os espíritos superiores tenham tido com Kardec foi sempre respeitando o fato que a elaboração do Espiritismo teria que ser “ fruto do trabalho do homem” (6). Desta maneira, os espíritos não tinham a obrigação de fazer o que era nosso trabalho. Se Kardec foi corrigido (7) em algum momento, foi por livre vontade dos Espíritos. Nós devemos respeitar o livre arbítrio dos espíritos superiores em corrigir ou não, em intervir ou não, nos trabalhos e conclusões de Allan Kardec. Pensemos.

(1)   No Francês: A quelle époque l'âme s'unit-elle au corps?  A la naissance.  — Avant sa naissance l'enfant a-t-il une âme?  Non.
(2)   Nos Prolegômenos das edições posteriores encontramos: “mas antes de o divulgares revê-lo-emos juntos, a fim de lhe verificarmos todas as minúcias.
(3)   Kardec escreveu, em Caráter da Revelação Espírita, no livro, A Gênese, que o Espiritismo é uma ciência de observação.
(4)   Exemplo de questão de cunho técnico: quanto tempo demora para o espírito deixar o corpo na morte ou em que momento o espírito se une ao corpo ao reencarnar. Exemplo de questão de cunho científico onde houve um erro:  A natureza dos cometas. Kardec no livro A Gênese, capítulo IX, em Cataclismos Futuros, item 12, escreveu que os cometas seriam fluídicos e que não causariam problemas em um eventual choque com a Terra. Este equívoco, é um exemplo de assunto de natureza científica, em que os espíritos superiores não quiseram intervir.
(5)   Todos os problemas que podemos encontrar na Doutrina Espírita são periféricos ou secundários e não tem o potencial de atingir as bases do edifício doutrinário que até hoje, permanecem bastante sólidos, pois não foram questionados de maneira satisfatória por ninguém. Exemplos destes princípios: Deus, sobrevivência da individualidade após a morte, reencarnação, comunicação mediúnica e os princípios morais.
(6)   Ler o Livro A Gênese de Kardec, capítulo um, Caráter da Revelação Espírita item 13.
(7)   Ler o Livro Obras Póstumas, na segunda parte, A Minha Primeira Iniciação ao Espiritismo em Meu Guia Espiritual.


 FAUSTO FABIANO DA SILVA
 faustofabianodasilva@yahoo.com.br
                                 
 BIBLIOGRAFIA

KARDEC, Allan. Livro dos Espíritos. Disponível em: <http://www.ipeak.net/site/upload/midia/pdf/le_livre_des_esprits_1a.ed_1857_mode_texte.pdf > Acesso em: 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. Livro dos Espíritos. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Livro-dos-Espiritos.pdf> Acesso em: 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. Livro dos Médiuns. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Livro-dos-Mediuns_Guillon.pdf >Acesso em: 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. A Gênese. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/07/A-genese_Guillon.pdf > Acesso em 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Disponível em: < http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/07/139.pdf > Acesso em 26 de junho de 2018.
                 


sábado, 3 de março de 2018

A Universalidade da prece


                                                          A universalidade da prece
                                                 
                                    (publicado no Jornal Espírita O Clarim em junho de 2018)

                      No Espiritismo, a prece tem um caráter de adoração (1). E adorar é elevar nosso pensamento a Deus.  Porém, em nenhum momento sequer, os Espíritos da Codificação e nem Allan Kardec, afirmaram que a prece teria valor se fosse proferida somente por este ou aquele círculo de fé. Desta maneira, para Deus, segundo o entendimento espírita, a prece do católico, do evangélico, do judeu, do muçulmano, do hindu, do espírita, ou de qualquer outro, são igualmente válidas.
                   Se todas as preces são válidas, não nos é estranho, por isto, sendo fácil de aceitar também, que alguém não espírita faça uma oração por nós.  Porque, não importa quem esteja fazendo a prece ou a quem a prece é dirigida, mas o que está no coração daquele que ora. Isto é tão verdade que todos têm a intuição que é melhor pedir uma prece a uma pessoa boa do que a um assassino (2).  Ou seja, temos por certo, mesmo que veladamente, que é o nível moral das pessoas, independente da sua crença, uma das coisas que influencia a intimidade do indivíduo com Deus e por sua vez a eficácia da sua prece e não o nome da fé que professe e muito menos os bens materiais que possua.
                  Na Doutrina Espírita, a verdadeira prece está sempre no coração e não nas palavras. No Livro dos Espíritos, por exemplo, nas questões 658 e 662 encontramos algumas frases neste sentido, respectivamente:  “A prece é sempre agradável a Deus, quando ditada pelo coração, pois, para Ele, a intenção é tudo” e “ Mas, ainda aqui, a prece do coração é tudo, a dos lábios nada vale”.
                  Se a prece verdadeira nasce no coração é justamente este fato que dá a ela a universalidade, pois qualquer um pode, em algum momento, desejar ardentemente elevar seu pensamento ao Criador, cada um à sua maneira, cada um conforme a sua fé.
                   Porém, se para o espírita, a universalidade da prece é óbvia, isto nem sempre é visto com naturalidade por algumas pessoas, pois as crenças teológicas podem dificultar tal compreensão. Por exemplo, os convertidos a determinada fé, que julgam ser a mais verdadeira, podem acreditar por isto, estarem mais aptos, mais preparados, ou se sentirem pessoas melhor qualificadas para orar do que os outros não convertidos. No entanto, para o Espiritismo não há pessoas de segunda classe:  os não convertidos, os ímpios, os não salvos, os não batizados, os não separados, pois todos nós sem exceção, somos filhos de Deus, todos nós temos a mesma natureza intrínseca, e o que há de diferente entre as pessoas são os diversos graus de desenvolvimento ou a evolução intelecto moral que o indivíduo apresente naquele momento. É como os alunos de uma escola, alguns estão no primeiro ano enquanto outros estão mais adiantados, porém, todos são alunos. Desta maneira, uma prece de um indígena aos espíritos da floresta tem o mesmo valor de uma oração para Jesus. Pois, sendo Deus justo, sempre leva em consideração nossa capacidade de compreender o mundo. Qualquer Teologia que ensine um Deus insensível e intolerante as diversas maneiras de entender o sagrado, estará equivocada em algum ponto.
                   Se Deus compreende as diversas manifestações do sagrado e por sua vez a prece originada de cada contexto de fé, por outro lado, não quer que seus filhos fiquem para sempre cultivando ideias afastadas da verdade. É por isto que existe a Lei do Progresso (3) para que os conceitos, juízos ou opiniões sejam cada vez mais condizentes com as Leis Divinas e aos poucos, aceitas pela maioria das pessoas, e por fim, por todos, num longo processo histórico reencarnacionista que tem a finalidade última uma sociedade terrena, mais feliz, harmônica e justa.      
                  Observamos até aqui, que o acreditar-se mais digno para orar somente porque o indivíduo professa determinada fé ou por que está fé lhe dá uma sensação de ter algo especial que os não convertidos não têm, dificulta a ideia da universalidade da prece.  Podemos acrescentar a esta dificuldade, tornando a universalidade ainda mais difícil de ser percebida, a redução da oração a um simples instrumento para legitimação da superioridade da minha fé em relação a dos outros. Se vou orar por alguém é porque o meu Deus é melhor, é mais poderoso que o da outra pessoa. Já vou orar com ares de quem está acima, como quem diz: você tem sua fé, mas na hora do aperto, pediu para eu orar. É como se o pedido da prece já fosse um reconhecimento do fracasso da fé individual em relação a do outro que ora. Porém, para quem entente a universalidade da prece, nada mais enganoso que este tipo de raciocínio.               
                   A universalidade da prece também perde o encanto quando quem ora, deseja em segredo, converter a outra pessoa. Vou orar, porém, isto é uma tática para que no futuro a pessoa a quem oro abandone sua crença individual e adote a minha. A prece que deveria ser fruto do amor a todas as pessoas, passa a ser apenas uma estratégia de convencimento e aproximação religiosa. Em outras palavras, vou orar, já com segundas intenções.
                    Aceitar a universalidade da prece, é aceitar a ação divina sobre todo o mundo, sobre todas as pessoas. As curas, os chamados livramentos dos perigos, as superações morais, não acontecem apenas nesta ou naquela fé, mas ao contrário, todos têm exemplos de benefícios conseguidos através das mais variadas manifestações de crença. Pois que Deus, ou os espíritos superiores em Seu nome, podem agir onde quiserem já que a soberania e o poder do Criador são absolutos. Então, porque alguns torcem o nariz quando ouvem um católico falar que recebeu tal graça através da oração a Virgem Maria?  E porque então outros torcem o nariz também, quando acredito alcançar alguma coisa boa através da oração de um espírita? É que o preconceito religioso e as crenças teológicas que tornam Deus de uso exclusivo de determinados grupos formam uma barreira intransponível na mentalidade atual de certos espíritos encarnados, o que apenas se modificará com o tempo nas sucessivas reencarnações.
                   Devemos entender, que a prece que é universal não se julga a única a dar a vitória, ou a cura a quem quer que seja. Se há pessoas de diversas crenças orando por alguém, a prece universal não se acredita a mais importante. Sabe que todas as orações, direcionadas para o bem e vindas do coração, podem trazer algum benefício para aquele que necessita. A prece universal é por amor e não para fazer propaganda de igreja ou da minha fé. A verdadeira prece sabe que o mais importante é amar e não somente crer. Pois muitos podem crer nisto ou naquilo, inclusive as pessoas de má índole, mas poucos realmente amam.
                    Quando resolvemos orar, algo de extraordinário acontece. Todo um paradigma materialista que estava impregnado no tecido cultural e por sua vez nos influenciando, cai por terra. O indivíduo, não mais somente um amontoado de carne e ossos, desperta a sua dimensão espiritual latente, calada, sufocada até então, pelo peso da materialidade da vida imediata, pelas aparências da carne e deste mundo transitório, enfim, começa a se libertar.  Por isto, falar em Espiritismo é falar na perspectiva da liberdade, pois enquanto alguns aprisionam Deus, a Doutrina Espírita O liberta. O cárcere divino pode ser observado na frase popular bastante conhecida que diz: “o diabo também cura”. Argumento para justificar as coisas boas que porventura o indivíduo alcance fora desta ou daquela igreja. A ação divina acaba virando estratégia de marketing para encher determinados templos religiosos. Já no Espiritismo, a ação de Deus e de seus emissários se estende por todas as crenças e igrejas, por todos os indivíduos. Desta maneira, se alguém não espírita relata que recebeu uma cura fora do contexto espírita, isto não será motivo de estranhamento, pois Deus pode agir em qualquer igreja ou templo, mesmo que fora do Cristianismo. Por isto a prece é mais universal do que alguns acreditam.              
     
(1) ler a questão 659 do Livro dos Espíritos de Kardec.
(2) ler o Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XXVII, item 13.
(3) ler o Livro dos Espíritos, capítulo VIII – Da Lei do Progresso.

Fausto Fabiano da Silva
faustofabianodasilva@yahoo.com.br
           
 Bibliografia                

 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São Paulo: Ed.  Lake, 2007.
 KARDEC, Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo. 85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.



Para viver um grande amor...


                                                  Para viver um grande amor...
                                
      (publicado na Revista Internacional de Espiritismo em abril de 2018)



                 “No mês de fevereiro de 1846 eu viajava pela França. Chegando a uma rica e grande cidade, fui dar um passeio em frente às belas lojas de que está repleta. Começou a chover; abriguei-me numa elegante galeria; de repente fiquei imóvel; meus olhos não conseguiam desviar-se da figura de uma jovem, sozinha atrás de uma vitrina de jóias. Conquanto muito bela, não foi sua beleza que me fascinou. Não sei que interesse misterioso, que laço inexplicável dominava e prendia todo o meu ser. Era uma simpatia súbita e profunda, sem qualquer conotação sensual, mas de uma força irresistível...” (1). Embora a descrição acima não precise acontecer necessariamente, em todas as uniões que se tornam felizes (2), não está descartado o desejo, pela maioria das pessoas, de um dia viver um encontro com esta natureza: profundo e arrebatador.
                  Se a maioria deseja um amor assim, a verdade é que nem todos o viverão. Pelo menos na atual encarnação. E por quê? Por que a maioria de nós quer ardentemente ser amado, mas será que estamos dispostos a amar com a mesma intensidade? Queremos alguém que nos faça feliz, no entanto, a crise se inicia quando é preciso renunciar esta felicidade, às vezes, para que o outro também o seja. Queremos que o outro atenda nossas expectativas em todas as fazes do casamento, mas às vezes, estas expectativas são altas demais, impossíveis de serem alcançadas, exigimos do outro uma pessoa que ele não pode ser.  Compreendemos com facilidade o que o outro tem que mudar para que a nossa felicidade seja possível, mas tenho grande dificuldade para ver aquilo que também tem que ser mudado em mim. Por isto e por muitas outras coisas, o conto de fadas muitas vezes, acaba na dura realidade do dia a dia. O amor é sufocado sob os escombros das dificuldades financeiras, na rotina, na vida sexual insatisfatória, nas frustrações pessoais, numa vida que queríamos ter, mas não temos. Por isto, casamentos felizes de inicio, acabam com trocas de farpas, agressões verbais, onde cada um não suporta mais o outro ou o contexto difícil em que o casamento está inserido. No entanto, o grande amor ainda é possível.
                  A noção que teremos ainda muitas vidas na Terra, ou em outros mundos espalhados pelo Universo, nos revela que a dificuldade que pode existir para o encontro amoroso ou para a sua continuidade não é e nunca vai ser um problema definitivo. Precisamos saber, porém, que os problemas e impedimentos não desaparecerão por encanto, pois na maioria das vezes, guardam raízes no desenvolvimento moral e intelectual do espírito. A felicidade conjugal que é duradoura tem intima relação ou mesmo é diretamente proporcional a um padrão elevado de moralidade, pois o amor mútuo, para resistir às lutas diárias e aos desafios do tempo, deve se expressar, por exemplo: na compreensão, na renúncia e no perdão de um para com o outro. Já a inferioridade moral atrapalha qualquer pretensão de felicidade ou mesmo inviabiliza o casamento quando as provas aparecerem e as tempestades surgirem ameaçadoras.
                  Conheço casamentos onde a esposa foi abandonada literalmente ou emocionalmente pelo desenvolvimento da rejeição e da indiferença após desenvolveram doenças graves ou por não serem tão atraentes como antes. Casamentos floridos e rosados, porém, que não se sustentaram na criação de filhos especiais, exigindo dos pais uma dedicação e amor que nem sempre as pessoas estão dispostas a oferecer. Casamentos recheados de promessas, mas com a introdução nefasta das drogas, o abandono dos filhos, o adultério e às vezes a morte. Casamentos que poderiam ter sido felizes, mas pelo comportamento sexual desregrado, sem controle e promíscuo de um dos parceiros, a separação inevitável.
                 Não podemos esquecer que aquilo que fazemos gera conseqüências futuras, as dívidas morais contraídas com nosso próximo sejam esposa, esposo, filhos ou pais, aparecerá cedo ou mais tarde, exigindo de nós a reparação na forma de experiências difíceis na Terra. Desta maneira, podemos entender os casamentos como a união do passado espiritual de duas pessoas.  Como vai ser este casamento? Vai depender outra vez, do livre arbítrio de cada um, da vontade real de serem felizes juntos, apesar das dificuldades que vão aparecendo. Da superação das tendências espirituais negativas sutis ou não, que carregamos de outras existências. A possibilidade de vivenciarmos um grande amor no futuro, depende muito de nosso posicionamento atual, pois a atualidade será o passado de amanhã, o que plantamos gerará frutos, o que fizermos a nós mesmos e aos outros, influenciará na felicidade futura que vamos desejar ter com alguém.
                    Se quisermos viver algum dia um grande amor, o caminho é sem dúvida o da própria construção pessoal. O aprimoramento espiritual nos leva ao equilíbrio e a calma interior, sem a necessidade de sair correndo desesperado atrás de ninguém. Há pessoas que não suportam ficar sozinhas, acabam um relacionamento e já entram irrefletidamente em outro, como aquela mãe solteira que diz: “não consigo ficar sem homem”, acaba engravidando seguidas vezes de companheiros diferentes. Da onde vem esta profunda carência? Esta solidão? Ora, às vezes, comportamentos psicológicos a serem trabalhados ou superados guardam raízes não somente no passado atual, mas em outras existências.
                 Lembro-me de uma história real de um homem casado com filhos que se viciou em drogas. Por certo tempo, sua mulher agüentou, porém, como não houve melhoras, esta mulher acabou tendo relacionamentos fora do casamento, largando os filhos para parentes cuidarem. Penso no futuro deste casal. Este homem, por exemplo, quem sabe, em vida futura, se perguntará como popularmente se diz, onde está a minha metade da laranja? A tampa da minha panela? Desejará ser amado, ter uma mulher atraente e virtuosa, ser também rico e com sucesso profissional, sendo feliz para sempre, entretanto eu pergunto: e as dívidas morais contraídas com seus filhos e esposa na reencarnação passada? O abandono da sua missão de pai pelo uso das drogas, não lhe acarretará consequências? Ora, qualquer felicidade almejada dentro ou fora do casamento em futuras reencarnações, será maculada, pois os fantasmas das dívidas morais vão acabar aparecendo de muitas formas. Complexos de inferioridade, de rejeição, sentimento de solidão freqüente, agonias indefinidas, comportamento na vida sexual que clamam por reeducação ou abstinência, agressividade, entre tantas outras coisas farão parte desta pessoa, eclodindo cedo ou mais tarde na vida dos futuros consórcios matrimoniais, interferindo na felicidade dos cônjuges. Além disso, a possibilidade de reencontrar aqueles filhos ou mesmo a antiga esposa na forma de parentes de difícil convivência é bem grande, pois o amor terá que nascer onde foi semeada a indiferença e a amargura.
                  Não devemos esquecer também, que o casamento, pode contar com a visita espiritual de seres que podem não ter nos perdoado de algo ruim que fizemos ou simplesmente se aproximarão por que nossa felicidade é do desagrado deles. Seres espirituais inferiores e infelizes, desejarão e trabalharão no sentido de sermos igualmente infelizes. Por isto, quanto mais evoluídos e comprometidos seriamente com uma nova forma de viver, com os valores do bem, menos influências espirituais negativas teremos bem como menores serão as dívidas morais que levaremos para outras vidas, e o amor conjugal estará mais livre para se expressar, para existir sem manchas, no encontro entre duas almas simpáticas pela primeira vez ou no encontro entre almas já conhecidas, agora mais maduras, experientes, mais sensíveis e amorosas, dispostas a não cometerem os mesmos erros do passado, com uma inclinação espontânea para viverem  enfim, o verdadeiro e o grande amor...

(1)   Revista Espírita de outubro 1864 em Transmissão do Pensamento.
(2)    Ler a questão 939 do Livro dos Espíritos: “em muitas uniões, que a princípio parecem destinadas a nunca ser simpáticas, acabam os que as constituíram, depois de se haverem estudado bem e de bem se conhecerem, por votar-se, reciprocamente, duradouro e terno amor, porque assente na estima...”

Fausto Fabiano da Silva

Bibliografia

KARDEC, Allan. Revista Espírita, outubro de 1864.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São Paulo: Ed.  Lake, 2007.