O mundo invisível na literatura de fantasia
(publicado na Revista Internacional de Espiritismo em
nov.2019)
Este estudo pretende revelar a sutil
sobrevivência, na memória do espírito encarnado, das coisas que ele viu, ouviu,
ou mesmo sentiu, de quando esteve no mundo espiritual (1) e a contribuição desta
memória na construção das obras literárias de fantasia (2). Para isto,
começaremos com as palavras do próprio Kardec: “Os contos de fadas estão sem dúvida cheios de coisas absurdas. Mas não
seriam eles, em alguns pontos, a pintura do que se passa no mundo dos
Espíritos?” (3).
Podemos teorizar o porquê de
Kardec ter escolhido o conto de fadas como exemplo de literatura que tivesse
elementos ou princípios existentes na pátria espiritual. A literatura de
fantasia, sendo ficção, não seria compreendida como ameaça à mentalidade da
época. Dificilmente haveria queimas de livros de contos de fadas, em praça
pública, como ocorreu com o Livro dos Espíritos (4), estando os autores por
isto, mais livres para usar sua criatividade, sua imaginação, abrindo-se então
um canal onde a intuição profunda das coisas espirituais pudesse se manifestar
mesmo inconscientemente.
Mas será possível encontrarmos alguma coisa, que se passa na vida após a
morte, na literatura de fantasia? Sim é possível. Vejamos alguns exemplos.
Mudança da matéria. Na
literatura, alguns personagens mágicos, como bruxas, fadas, magos ou gênios,
podem alterar ou transformar a forma das coisas materiais, como uma abóbora numa
carruagem, ou seja, produzir coisas a partir de outras. Para nós, é o princípio
que se esconde atrás destas fantasias que importa. E este princípio diz respeito ao poder da manipulação
da matéria pelos espíritos desencarnados. Lemos no do Livro dos Médiuns: “o Espírito tem sobre os elementos materiais
espalhados por toda a parte no espaço, na vossa atmosfera, um poder que estais
longe de suspeitar. Ele pode, à sua
vontade, concentrar estes elementos e lhes dar a forma aparente própria aos
seus projetos” (5).
A
simbologia luz e trevas. De uma maneira geral, nas histórias, o mal combina
com a escuridão e o bem com a luz. Devemos nos perguntar, se isto se dá somente
por questões psicológicas ou culturais, ou se existe o apoio da memória do
espírito que se revela por uma espécie de intuição das realidades espirituais.
No livro de Kardec, O Céu e o Inferno, descobrimos o seguinte relato de
regiões bastante adiantadas no mundo dos espíritos: “Pode-se entrever, no infinito
incomensurável, as regiões resplandecentes do fogo divino, chegando-se mesmo a
ofuscar-se ao contemplá-las através do véu que ainda as envolve” (6). Notemos que a palavra “fogo” e
“resplandecente” lembram luminosidade, energia. Ora, se é assim para as regiões
com espíritos mais evoluídos, o contrário também é verdadeiro. Outra vez, no
livro, O Céu e o Inferno, temos agora o relato de um espírito sofredor: “formas sombrias e desoladas, mergulhadas
umas em tedioso desespero; furiosas ou irônicas outras, deslizavam em torno de
mim...” (7). Os próprios espíritos podem também apresentar uma
irradiação com coloração. Na questão 88 do Livro dos Espíritos lemos: “Para vós, ela varia do escuro ao brilho do
rubi, de acordo com a menor ou maior pureza do Espírito”. Concluímos então que a simbologia luz e
trevas pode ter sido construída com o auxílio de uma memória intuitiva
conseguida através das experiencias vividas pelo espírito desencarnado quando ele
viu ocasionalmente almas iluminadas e
outras em sofrimento.
A oposição entre o belo e o feio. Normalmente temos como certo que
a maldade tem relação com a feiúra e o medo. Por isto, é natural o personagem maléfico
ter algo de assustador. Já a criatura do bem dificilmente será horripilante e
pavorosa. Mas será esta intuição apenas fruto de nossa imaginação?
Provavelmente não, pois guarda similaridade na realidade do mundo dos
espíritos. Kardec escreve: “Os Espíritos
superiores têm uma figura bela, nobre e serena; os mais inferiores, alguma
coisa de selvagem e de bestial...” (8).
O poder de voar: Através do Espiritismo sabemos que os espíritos de
uma maneira geral, não ficam presos ao solo terreno com os encarnados. Nós
praticamente rastejamos se nos compararmos aos desencarnados. A liberdade que
os espíritos gozam de ir e vir, dependendo da evolução do espírito, a
capacidade de flutuar, percorrendo os espaços é fantástica. Na questão 89 do Livro dos Espíritos lemos: “Os
Espíritos gastam algum tempo para atravessar o espaço? R: Sim; mas rápido como
o pensamento”. O livro,
O Céu e o inferno, contém a seguinte descrição do espírito Joseph Maître que
cita espíritos pairando do espaço: “...ao entrever as claridades celestes,
distinguindo os Espíritos que me rodeavam, sorrindo, benévolos, bem como
aqueles que, radiosos, flutuavam no Espaço”.
Não
é estranho, portanto que na literatura de fantasia haja personagens que voam. O
ser humano encarnado, preso a um corpo limitado de carne e osso, guardaria uma
nostalgia indefinida, um desejo intenso pela liberdade que momentaneamente não
desfruta. Não podendo voar, cria, através de sua imaginação, personagens que
tem esta capacidade.
Durante todo o tempo da história da humanidade
a imaginação não ficou dentro das quatro paredes da vida rotineira e comum dos
homens, ela sempre deu um jeito de se inclinar para a dimensão da fantasia. Por
que será? Porque a dimensão humana material não consegue definir tudo aquilo
que nós somos, em outras palavras, a matéria é incapaz de definir a natureza
profunda do ser humano. Há algo em nós
que recusa uma dimensão inteiramente material, justamente porque não somos
somente matéria. Ora, as expressões do ser humano nas Artes e na Literatura são
expressões também do seu espírito imortal.
(01)
Ler questão 959
do Livro dos Espíritos: Donde nasce para o homem o sentimento instintivo da
vida futura? R: Já o dissemos, antes de encarnar, o Espírito conhecia todas
essas coisas e a alma conserva uma vaga lembrança do que sabe e do que viu no
estado espiritual.
(02)
Fantasia é um
gênero da ficção em que se usa geralmente fenômenos sobrenaturais, mágicos e
outros como um elemento primário do enredo, tema ou configuração.
(03)
No Livro O Céu e
o Inferno em Espíritos Felizes, Sanson.
(04)
Em 09 de outubro
de 1861 em Barcelona na Espanha, às 10 horas e 30 minutos, foram queimados, por
ordem do bispo local, trezentos livros que tratavam do Espiritismo, entre eles
o Livro dos Espíritos. Ler Revista Espírita de novembro de 1861 em Resquícios
da Idade Média.
(05) Ler Livro dos Médiuns, capítulo VIII, item
128.
(06) Ler Livro O Céu e o Inferno em Um Médico
Russo.
(07) Ler Livro O Céu e o Inferno na descrição do
espírito Novel.
(08) Ler
Livro dos Médiuns, capítulo VI, Item 102.
Fausto Fabiano da Silva
Bibliografia
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 8ª ed. São Paulo: Ed. FEESP,
1995.
KARDEC, Allan.
O Céu e o Inferno. 10ª ed. São
Paulo: Ed. LAKE, 2002.
KARDEC, Allan. O
Livro dos Médiuns. 1ª ed. Rio de Janeiro: Ed. CELD, 2010.
KARDEC, Allan. Revista
Espírita. Novembro de 1861, Araras: Ed. IDE, 1993.