O
rito de passagem
(publicado na RIE de setembro de 2017)
Existem muitos rituais de passagem. Alguns
deles expressam um compromisso que a pessoa assume com o grupo, com um ideal,
ou mesmo com a divindade. Um exemplo deste último caso é o “aceitar Jesus como
suficiente salvador” das igrejas evangélicas. Ora, a pessoa que aceita
verdadeiramente (1) Jesus, deixa, segundo a Teologia, de ser apenas criatura e
se torna filho de Deus. A partir daquele dia seu nome estará escrito no Livro
da Vida. É de fato um rito de passagem por excelência. Porém, esta nova condição lhe acarreta certa
exigência: a transformação moral.
Contudo,
este aceitar Jesus, geralmente em cultos altamente emocionais, com hinos e
pregações envolventes, não geram a transformação moral esperada de maneira
repentina e algumas vezes nem mesmo a longo prazo. É por isto que existe a ideia
bastante difundida que é preciso se alimentar da Palavra, não deixando de frequentar
a igreja, para que o “fogo” não se apague. Entretanto, a frequência assídua aos
cultos não é garantia total de transformação, pois existem pessoas que
aceitaram a Cristo, se batizaram e se desviaram ou mesmo abandonaram a igreja,
não conseguindo largar suas velhas práticas do mundo. Revela-se então os limites do testemunho
público, do ritual de passagem ou de qualquer cerimônia onde a pessoa prometa
direta ou indiretamente viver com mais santificação ou purificação.
Outra limitação dos rituais
de passagem é expressada pela incapacidade de resolverem certos problemas ou
aflição pelo qual passamos. Algumas pessoas simplesmente não compreendem porque,
após realizarem todas as obrigações de culto ainda passam por angústias. Por
exemplo: aceitam Jesus, se batizam, pagam o dízimo com fidelidade, vão a todos
os cultos, fazem campanhas de oração por isto ou aquilo, jejuam, pregam,
trabalham na igreja como obreiros e mesmo assim não se livram de situações
delicadas ou problemáticas (2).
Nós espíritas, sabemos que
muitas dificuldades são oriundas de outras reencarnações, sem compreendermos
isto, fica difícil aceitarmos a justiça divina, por exemplo: por que será que aquela pessoa sendo crente há
muitos anos, ainda não conseguiu ver sua vitória chegar? E por que será que o
fulano que aceitou Jesus a semana passada tudo lhe parece sorrir?
A limitação do rito de
passagem é visualizada também, quando ele é utilizado como moeda de troca para
uma vida de prosperidade, principalmente material. Uma vez por exemplo, me disseram para
abandonar a Doutrina Espírita e aceitar outra fé. Deus então abriria as portas
do céu, emperradas por eu ser espírita, e inclusive a minha vida financeira
iria mudar. Questionei então o porquê de centenas de pessoas que moram em favelas
e comungarem a tal fé, continuarem pobres, doentes e cheias de problemas. Será
que Deus se esqueceu delas?
É bem difícil aceitar, para
o religioso em geral, que Deus se manifeste fora do círculo de sua crença
pessoal, por isto, os rituais de passagem são exigidos para que Deus possa agir
com mais liberdade na vida do fiel, ficando de fora os outros, considerados
muitas vezes como ímpios ou até infiéis. No entanto, para a Doutrina Espírita, os
espíritos bons, vão estar sempre perto de qualquer pessoa que deseje o bem ou
que trabalhe para o progresso da humanidade: ateu, judeu, muçulmano, católico,
evangélico, espírita, homossexual, negro, asiático, mulher, homem, pobre, rico
ou qualquer outro.
As limitações do ritual de passagem
visto até aqui, porém, não o transforma necessariamente em uma coisa errada,
hipócrita ou mesmo sem valor. Existem pessoas que precisam mesmo da existência
de tais rituais ou cerimônias. É por isto que a Doutrina Espírita não condena
nenhum ritual que seja inofensivo e expresse o bem principalmente se a pessoa
sente necessidade psicológica ou emocional de fazê-lo. O Espiritismo apenas
esclarece que para Deus, o mais importante é o que está no coração.
Podemos afirmar inclusive que para algumas
pessoas, a falta de rituais na Doutrina Espírita ou no movimento espírita,
principalmente os de passagem, seja um dos motivos para certos indivíduos não se
adaptarem à Doutrina Espírita, pois no movimento espírita, não há nenhum juramento
ou culto especial para se tornarmos espíritas, não há roupas especiais, nem
anéis que nos identifique como espíritas.
Esta falta de rituais tem
um ponto positivo: é o começo de uma
preparação para a libertação futura de qualquer necessidade de coisas
exteriores, sendo cerimônias, rituais, liturgias ou qualquer coisa material ou
simbólica para adorar a Deus ou para expressarmos nossa espiritualidade.
Entretanto, alguns
espíritas podem não estar preparados para esta liberdade. Digo liberdade,
porque se não há um cerimonial público de compromisso do espírita, se não há
nenhum anel ou aliança nos dedos nos lembrando do Espiritismo, às vezes, a tão
conhecida reforma íntima, que equivale moralmente ao aceitar Jesus dos evangélicos,
pode ser postergada indefinidamente na presente reencarnação, sem que
aparentemente ninguém saiba disto.
Devemos nos perguntar
porque a reforma íntima dos espíritas, tão comentada, não aconteça sempre. É
simples. Por ela ser íntima, tão íntima que acaba sendo esquecida pela própria
pessoa que deveria fazê-la. Notamos que no Espiritismo é grande a sensação de
liberdade, porque não há espíritos se materializando na nossa frente nos
cobrando isto ou aquilo, uma vez que nosso livre arbítrio é muito respeitado. Não
há nenhum rito para iniciarmos nossa reforma moral, por outro lado também, há
pouca expectativa pública em relação a nossa retidão moral. Quando se tornamos espíritas, as pessoas no
geral, apenas saberão que vamos acreditar em espíritos e na reencarnação.
Mas
é compreensível perceber que a relação entre ser espírita e retidão moral nem
sempre seja óbvia, afinal, a Doutrina Espírita é entendida, por parte da
população, como coisa do diabo, relacionada a “médiuns videntes”, feitiçarias e
práticas ocultistas. No entanto, causa
profunda tristeza que a relação entre ser espírita e retidão moral não seja
evidente nem urgente, algumas vezes, nem pelos próprios espíritas.
Muitos espíritas não sabem
exatamente a real dimensão da sua missão (3) na Terra. Nem se deram conta do
compromisso ou a aliança que deveriam ter com Jesus. Sabem que a Doutrina Espírita tem Jesus, seu
nome por exemplo, é citado várias vezes em toda as chamadas Obras Básicas. No
entanto, não basta Jesus estar na Doutrina é necessário que ele esteja em
nós. As freiras costumam usar uma
aliança nos dedos para lembrá-las do voto que fizeram, os crentes usam a confissão
pública para renascerem de novo, selando o compromisso para serem um novo
indivíduo. E o espírita? Qual nosso posicionamento diante de Cristo? Qual nosso
posicionamento diante da nossa missão? Temos que nos perguntar: qual aliança
que temos com Jesus? Muitos poderão dizer que não temos aliança alguma com o
mestre, porque nosso compromisso é moral, mas que moral é esta? Todos os
espíritas sabem que devem amar o próximo mais que amor ao próximo é este? Por
acaso os espiritas seguem alguma moral genérica? Ora, os Espíritos da
Codificação, não ficaram em cima do muro, eles deram os nomes aos bois para que
o espiritismo não se perdesse no mar do relativismo moral dos homens. O amor ao próximo dos espíritas é o amor
defendido por Jesus com toda a sua dimensão e implicações. O vínculo com jesus
é claro e nosso compromisso com ele também teria que ser.
Sabemos que Jesus é o guia da humanidade e
que gerencia (4) o processo de regeneração do planeta Terra. No entanto, esta
humanidade está sempre fora de nós, é nosso vizinho, são as ruas, os outros
países. O chamado de Jesus, porém, também é para quem escreve este texto e para
você que está lendo.
O fato de nós não termos
rituais de passagem, não quer dizer que nosso compromisso com a Doutrina
Espírita não exista, o fato de não usarmos uma aliança indicando nossa intenção
de melhorarmos moralmente não quer dizer que esta transformação não será cobrada
um dia. Desta maneira, devemos perceber que nosso compromisso com Cristo, como
obreiros do Senhor e trabalhadores da última hora é real, embora isto não
esteja materializado em coisa alguma.
(1) Pensando
nas coisas do céu e não com segundas e terceiras intenções comumente
financeiras.
(2) A
homossexualidade persistente em jovens que nasceram e cresceram dentro das
igrejas evangélicas é um exemplo onde nenhum ritual de passagem, oração ou
jejum tiveram a capacidade de reverter.
(3) Ler
capítulo XX, “Os trabalhadores da última hora”, do Evangelho Segundo o
Espiritismo.
(4) No
Evangelho Segundo Espiritismo capítulo primeiro em O Espiritismo, encontramos a
frase que diz respeito a Doutrina Espírita e ao mesmo tempo revela que Jesus
preside a regeneração da Terra: “Ele é pois, obra do Cristo, que preside,
conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o Reino de
Deus na Terra”.
Fausto Fabiano da Silva
Bibliografia
KARDEC, Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo. 85. ed.
Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.
Ótimo texto Fausto. Gostei muito.
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