terça-feira, 19 de setembro de 2017

O rito de passagem

(publicado na RIE de setembro de 2017)


                  Existem muitos rituais de passagem. Alguns deles expressam um compromisso que a pessoa assume com o grupo, com um ideal, ou mesmo com a divindade. Um exemplo deste último caso é o “aceitar Jesus como suficiente salvador” das igrejas evangélicas. Ora, a pessoa que aceita verdadeiramente (1) Jesus, deixa, segundo a Teologia, de ser apenas criatura e se torna filho de Deus. A partir daquele dia seu nome estará escrito no Livro da Vida. É de fato um rito de passagem por excelência.  Porém, esta nova condição lhe acarreta certa exigência: a transformação moral.  
                   Contudo, este aceitar Jesus, geralmente em cultos altamente emocionais, com hinos e pregações envolventes, não geram a transformação moral esperada de maneira repentina e algumas vezes nem mesmo a longo prazo. É por isto que existe a ideia bastante difundida que é preciso se alimentar da Palavra, não deixando de frequentar a igreja, para que o “fogo” não se apague. Entretanto, a frequência assídua aos cultos não é garantia total de transformação, pois existem pessoas que aceitaram a Cristo, se batizaram e se desviaram ou mesmo abandonaram a igreja, não conseguindo largar suas velhas práticas do mundo.  Revela-se então os limites do testemunho público, do ritual de passagem ou de qualquer cerimônia onde a pessoa prometa direta ou indiretamente viver com mais santificação ou purificação.
                   Outra limitação dos rituais de passagem é expressada pela incapacidade de resolverem certos problemas ou aflição pelo qual passamos. Algumas pessoas simplesmente não compreendem porque, após realizarem todas as obrigações de culto ainda passam por angústias. Por exemplo: aceitam Jesus, se batizam, pagam o dízimo com fidelidade, vão a todos os cultos, fazem campanhas de oração por isto ou aquilo, jejuam, pregam, trabalham na igreja como obreiros e mesmo assim não se livram de situações delicadas ou problemáticas (2).
                     Nós espíritas, sabemos que muitas dificuldades são oriundas de outras reencarnações, sem compreendermos isto, fica difícil aceitarmos a justiça divina, por exemplo:  por que será que aquela pessoa sendo crente há muitos anos, ainda não conseguiu ver sua vitória chegar? E por que será que o fulano que aceitou Jesus a semana passada tudo lhe parece sorrir?
                   A limitação do rito de passagem é visualizada também, quando ele é utilizado como moeda de troca para uma vida de prosperidade, principalmente material.  Uma vez por exemplo, me disseram para abandonar a Doutrina Espírita e aceitar outra fé. Deus então abriria as portas do céu, emperradas por eu ser espírita, e inclusive a minha vida financeira iria mudar. Questionei então o porquê de centenas de pessoas que moram em favelas e comungarem a tal fé, continuarem pobres, doentes e cheias de problemas. Será que Deus se esqueceu delas?
                    É bem difícil aceitar, para o religioso em geral, que Deus se manifeste fora do círculo de sua crença pessoal, por isto, os rituais de passagem são exigidos para que Deus possa agir com mais liberdade na vida do fiel, ficando de fora os outros, considerados muitas vezes como ímpios ou até infiéis. No entanto, para a Doutrina Espírita, os espíritos bons, vão estar sempre perto de qualquer pessoa que deseje o bem ou que trabalhe para o progresso da humanidade: ateu, judeu, muçulmano, católico, evangélico, espírita, homossexual, negro, asiático, mulher, homem, pobre, rico ou qualquer outro.
                    As limitações do ritual de passagem visto até aqui, porém, não o transforma necessariamente em uma coisa errada, hipócrita ou mesmo sem valor. Existem pessoas que precisam mesmo da existência de tais rituais ou cerimônias. É por isto que a Doutrina Espírita não condena nenhum ritual que seja inofensivo e expresse o bem principalmente se a pessoa sente necessidade psicológica ou emocional de fazê-lo. O Espiritismo apenas esclarece que para Deus, o mais importante é o que está no coração.
                   Podemos afirmar inclusive que para algumas pessoas, a falta de rituais na Doutrina Espírita ou no movimento espírita, principalmente os de passagem, seja um dos motivos para certos indivíduos não se adaptarem à Doutrina Espírita, pois no movimento espírita, não há nenhum juramento ou culto especial para se tornarmos espíritas, não há roupas especiais, nem anéis que nos identifique como espíritas. 
                    Esta falta de rituais tem um ponto positivo:  é o começo de uma preparação para a libertação futura de qualquer necessidade de coisas exteriores, sendo cerimônias, rituais, liturgias ou qualquer coisa material ou simbólica para adorar a Deus ou para expressarmos nossa espiritualidade.
                    Entretanto, alguns espíritas podem não estar preparados para esta liberdade. Digo liberdade, porque se não há um cerimonial público de compromisso do espírita, se não há nenhum anel ou aliança nos dedos nos lembrando do Espiritismo, às vezes, a tão conhecida reforma íntima, que equivale moralmente ao aceitar Jesus dos evangélicos, pode ser postergada indefinidamente na presente reencarnação, sem que aparentemente ninguém saiba disto. 
                    Devemos nos perguntar porque a reforma íntima dos espíritas, tão comentada, não aconteça sempre. É simples. Por ela ser íntima, tão íntima que acaba sendo esquecida pela própria pessoa que deveria fazê-la. Notamos que no Espiritismo é grande a sensação de liberdade, porque não há espíritos se materializando na nossa frente nos cobrando isto ou aquilo, uma vez que nosso livre arbítrio é muito respeitado. Não há nenhum rito para iniciarmos nossa reforma moral, por outro lado também, há pouca expectativa pública em relação a nossa retidão moral.  Quando se tornamos espíritas, as pessoas no geral, apenas saberão que vamos acreditar em espíritos e na reencarnação.
                   Mas é compreensível perceber que a relação entre ser espírita e retidão moral nem sempre seja óbvia, afinal, a Doutrina Espírita é entendida, por parte da população, como coisa do diabo, relacionada a “médiuns videntes”, feitiçarias e práticas ocultistas.  No entanto, causa profunda tristeza que a relação entre ser espírita e retidão moral não seja evidente nem urgente, algumas vezes, nem pelos próprios espíritas.
                  Muitos espíritas não sabem exatamente a real dimensão da sua missão (3) na Terra. Nem se deram conta do compromisso ou a aliança que deveriam ter com Jesus.  Sabem que a Doutrina Espírita tem Jesus, seu nome por exemplo, é citado várias vezes em toda as chamadas Obras Básicas. No entanto, não basta Jesus estar na Doutrina é necessário que ele esteja em nós.  As freiras costumam usar uma aliança nos dedos para lembrá-las do voto que fizeram, os crentes usam a confissão pública para renascerem de novo, selando o compromisso para serem um novo indivíduo. E o espírita? Qual nosso posicionamento diante de Cristo? Qual nosso posicionamento diante da nossa missão? Temos que nos perguntar: qual aliança que temos com Jesus? Muitos poderão dizer que não temos aliança alguma com o mestre, porque nosso compromisso é moral, mas que moral é esta? Todos os espíritas sabem que devem amar o próximo mais que amor ao próximo é este? Por acaso os espiritas seguem alguma moral genérica? Ora, os Espíritos da Codificação, não ficaram em cima do muro, eles deram os nomes aos bois para que o espiritismo não se perdesse no mar do relativismo moral dos homens.  O amor ao próximo dos espíritas é o amor defendido por Jesus com toda a sua dimensão e implicações. O vínculo com jesus é claro e nosso compromisso com ele também teria que ser.
                    Sabemos que Jesus é o guia da humanidade e que gerencia (4) o processo de regeneração do planeta Terra. No entanto, esta humanidade está sempre fora de nós, é nosso vizinho, são as ruas, os outros países. O chamado de Jesus, porém, também é para quem escreve este texto e para você que está lendo.
                   O fato de nós não termos rituais de passagem, não quer dizer que nosso compromisso com a Doutrina Espírita não exista, o fato de não usarmos uma aliança indicando nossa intenção de melhorarmos moralmente não quer dizer que esta transformação não será cobrada um dia. Desta maneira, devemos perceber que nosso compromisso com Cristo, como obreiros do Senhor e trabalhadores da última hora é real, embora isto não esteja materializado em coisa alguma.
                  
(1)   Pensando nas coisas do céu e não com segundas e terceiras intenções comumente financeiras.
(2)   A homossexualidade persistente em jovens que nasceram e cresceram dentro das igrejas evangélicas é um exemplo onde nenhum ritual de passagem, oração ou jejum tiveram a capacidade de reverter.
(3)   Ler capítulo XX, “Os trabalhadores da última hora”, do Evangelho Segundo o Espiritismo.
(4)   No Evangelho Segundo Espiritismo capítulo primeiro em O Espiritismo, encontramos a frase que diz respeito a Doutrina Espírita e ao mesmo tempo revela que Jesus preside a regeneração da Terra: “Ele é pois, obra do Cristo, que preside, conforme igualmente o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o Reino de Deus na Terra”.


Fausto Fabiano da Silva

Bibliografia

KARDEC, Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo. 85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.




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