A
RELIGIÃO E A QUESTÃO ETIMOLÓGICA
(Publicado na Revista Internacional de Espiritismo
em outubro de 2010)
Há várias propostas para a procedência
da palavra religião, entre elas a de Lactâncio (240 d.c -
320 d.c) autor cristão, que
afirma que o termo vem de religare, religar, argumentando que a religião
serve para religar os seres humanos a Deus.
Podemos usar esta proposta para afirmar que a
Doutrina Espírita tem um elemento religioso ou seja, o de religar a criatura ao
seu Criador, já que a crença em Deus é um dos postulados da Doutrina.
A crítica que
pode ser feita a esta interpretação, levando em conta a Doutrina
Espírita, é que nós nunca fomos desligados de Deus para termos que, em algum
momento, ligar-nos novamente.
A
crítica em questão, é correta, entretanto, tem um ponto fraco importante, que é
aceitar a palavra “religar” apenas no sentido literal que ela tenha, ou seja,
ao “pé da letra”. E aceitar as coisas ao “pé da letra”, está mais próximo de um
discurso religioso fundamentalista, que filosófico. Sem perceber, quem acredita
apenas no lado científico-filosófico da Doutrina Espírita e faz tal crítica,
cai em contradição, usando um discurso que justamente quer combater, pois o
pensamento filosófico teria que ser o primeiro a destacar o sentido mais amplo
das palavras.
É
evidente que a palavra religar tem um lado simbólico, mais profundo. Assim,
quando agimos de maneira incorreta, quando optamos por uma vida oposta aquela
que Deus quer para nós, quando não suportamos o absurdo que a vida pode
tornar-se e a fazemos sem sentido apelando para o suicídio, por exemplo, cuja
gênese é muito bem expressa pelo escritor e filósofo Albert Camus em seu livro
O Mito de Sísifo: “Um gesto como este se prepara no silêncio do coração” é como
se nos desligássemos do objetivo para qual Deus nos criou, é como se nós
expulsássemos Deus da nossa alma. Sobre esta ausência, temos as palavras do
autor espírita Hermínio C. Miranda:
...resta, porém, um
problema: com o que preencher aquela vastidão íntima que, de repente, parece desértica,
árida, morta e empenhada apenas em repetir os ecos de nossa inesperada solidão?
Subitamente ficamos sem lastro, como que soltos no tempo e no espaço, sem rumo
e sem retorno, livres, sim, de ir para onde quisermos, mas para onde mesmo
queremos ir? Livres para fazer o que muito bem entendermos, mas o que é mesmo
que estamos pretendendo fazer? O que fazer da "liberdade"
recém-adquirida? E será que estávamos presos a alguma coisa antes? Ou era
apenas a birra ingênua da criança que, solta das mãos da mãe, dá meia dúzia de
passos incertos, apenas para saborear uma liberdade que não pode e não sabe
como usar e nem para que a deseja?
Nós não
somos obrigados a usar ou entender as palavras apenas no seu sentido literal (dos
dicionários). Fica claro que a palavra “silêncio”, usada por Albert Camus, por
exemplo, diz muito mais que a falta de sons, é ausência de tantas coisas e
tantas outras podem lhe dizer respeito: solidão, angústia, desamparo, vazio.
Palavras que juntas podem ser sinônimo de desespero ou uma grande e vasta
solidão da alma, lembrando Hermínio C. Miranda. Assim, quando a alma cansada
procura uma alternativa para sua angústia e a encontra em Deus, não existe
termo ou palavra mais significativa do que religar, que é ligar-se outra vez a
proposta que o Criador tem para cada um de nós.
Como se vê, é perfeitamente possível defender
o aspecto religioso da Doutrina Espírita tendo por base a etimologia,
independentemente de qualquer processo histórico que tenha ocorrido do
movimento espírita, influência de alguém carismático, ou de um órgão unificador,
e muito mais independente ainda de qualquer “necessidade de religião”.
FAUSTO FABIANO DA SILVA
REFERÊNCIAS:
MIRANDA, Hermínio C. Espaço para Deus. Disponível em < http://espirito.org.br/portal/artigos/diversos/religiao/espaco-para-deus.html > Acesso em 20 agosto 2010.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa:
Ed. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
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