A POLIGENIA E O ESPIRITISMO
(Publicado na Revista Internacional de
Espiritismo em nov. de 2010)
Segundo o
dicionário de Filosofia de Nícola Abbagnano, a doutrina para a qual todas as
raças humanas vivas descendem de um único ramo, se chama monogenismo, e a
doutrina contrária chama-se poligenismo.
O monogenismo está de acordo com as
teorias mais aceitas atualmente sobre a origem comum dos seres humanos, ou
seja, nós seríamos, todos, descendentes de populações africanas que se
espalharam pelo mundo. Por exemplo, em reportagem de título “Adão era africano”
da Revista Veja de junho de 2003, nós extraímos a seguinte frase: “A contribuição mais importante do
Homo sapiens idaltu é reforçar a concepção de que o homem surgiu na África e de lá partiu para a
conquista de outros continentes”. Por sua vez, o
poligenismo, defende que o homem originou-se de espécies biológicas separadas,
com origens diferentes, independente entre si, sem laços de parentesco.
Estudando o Espiritismo mais
profundamente, verificamos que este caminha no sentido do monogenismo. Vejamos
algumas questões do Livro dos Espíritos que comprovam esta interpretação,
advertindo o leitor que não tire conclusões precipitadas antes de ler todo o
texto.
53. O homem surgiu
em muitos pontos do globo?
“Sim
e em épocas várias, o que também constitui uma das
causas
da diversidade das raças. Depois, dispersando-se os
homens
por climas diversos e aliando-se os de uma aos de
outras
raças, novos tipos se formaram.”
a)
— Estas diferenças constituem espécies distintas?
“Certamente
que não; todos são da mesma família. Porventura
as
múltiplas variedades de um mesmo fruto são motivo
para
que elas deixem de formar uma só espécie?
Percebe-se que uma leitura da primeira
parte da resposta da questão 53 nos remeteria a visão poligênica, mas para
entendermos realmente, devemos compreender a resposta toda, inclusive a
questão, 53 “a”, senão, correremos o risco de ficar na tentadora
superficialidade das coisas.
Se
nós dispuséssemos apenas da informação que o homem surgiu em vários lugares,
isso seria poligenia, mas devemos notar que na questão 53 “a” existe a
expressão “de uma mesma família”, e
para que não houvesse dúvidas, a complementação: “Porventura
as múltiplas variedades de um mesmo fruto são motivo para que elas deixem de
formar uma só espécie?”, portanto, é inequívoca a idéia que os homens
descendem um dos outros, independente da variação dos aspectos exteriores, e
isto é monogenia, que foi tão bem explicada na linguagem figurada da
diversidade dos frutos, que nos envia a idéia da diversidade do homens: negros,
brancos, indígenas, altos, magros, com cabelos enrolados ou lisos, com olhos
azuis ou pretos, todos, da mesma espécie, da espécie humana.
Se os homens descendem uns
dos outros, e como dizem os espíritos, se surgiram em vários pontos do globo, somente existe um jeito para isto acontecer: por migração.
A ideia das migrações humanas primordiais
da África para outras regiões do mundo é atualíssima. Esqueletos de Homo
erectus e heidelbergensis, foram encontrados na África, Europa e na Ásia. E não
viveram necessariamente numa mesma época, o Homo hábilis, por exemplo, é bem
anterior ao outros dois ancestrais mencionados.
Uma teoria (hipótese multirregional) relata que os
Homo sapiens vindos da África que se espalharam pelo mundo não eliminaram por
completo os hominídeos que já estavam fora da África, saídos deste continente
por migrações ainda mais antigas. Teria havido um cruzamento de espécies,
contribuindo para a formação do genoma humano atual. Por isto, a resposta dos
espíritos “dispersando-se os homens por climas diversos e aliando-se os de uma
aos de outras raças, novos tipos se formaram” talvez seja mais atual que pensamos.
Vamos
analisar agora a questão 690 do Livro dos Espíritos:
690.
Do
ponto de vista físico, são de criação especial os corpos
da raça atual, ou procedem dos corpos
primitivos,
mediante
reprodução?
“A
origem das raças se perde na noite dos tempos. Mas, como pertencem todas à
grande família humana, qualquer que
tenha sido o tronco de cada uma, elas puderam aliar-se entre si e produzir tipos
novos” (Grifos meus)
Observemos as palavras,
família e tronco, família lembra descendência e tronco lembra árvore e suas ramificações.
Vários troncos que se reúnem por sua vez em troncos maiores e estes por fim
formam a grande árvore genealógica da espécie humana. Como se vê, antecipando
mesmo Charles Darwin, o Livro dos Espíritos de 1857, nos dá a visão da origem
comum das espécies.
Perguntamos então, como a
Doutora Sandra Jacqueline Stoll, em seu livro Espiritismo à Brasileira, pode
escrever que, no Livro dos Espíritos, a “idéia de uma origem comum a todas as
raças humanas, tese defendida pelos monogenistas, não se coloca”? Vamos
analisar agora até que ponto os argumentos desta autora tem fundamentação.
Para afirmar que a Doutrina
Espírita absorveu a poligenia, a autora usa um trecho de Allan Kardec, que se
encontra no Livro dos Espíritos:
“o
exame fisiológico demonstra haver, entre certas raças, diferenças
constitucionais mais profundas do que as que o clima é capaz de determinar. O
cruzamento das raças dá origem aos tipos intermediários. Ele tende a apagar os
caracteres extremos, mas não os cria; apenas produz variedades. Ora, para que
tenha havido cruzamento de raças, preciso era que houvesse raças distintas.
Como, porém, se explicará a existência delas, atribuindo-se-lhes uma origem
comum e, sobretudo, tão pouco afastada? Como se há de admitir que, em poucos
séculos, alguns descendentes de Noé se tenham transformado ao ponto de
produzirem a raça etíope, por exemplo? Tão pouco admissível é semelhante metamorfose,
quanto a hipótese de uma origem comum para o lobo e o cordeiro, para o elefante
e o pulgão, para o pássaro e o peixe. Ainda uma vez: nada pode prevalecer
contra a evidência dos fatos. Tudo, ao invés, se explica, admitindo-se: que a
existência do homem é anterior à época em que vulgarmente se pretende que ela
começou; que diversas são as origens”
O texto mencionado está
inserido num capítulo chamado “Considerações e Concordâncias Bíblicas
Concernentes à Criação, onde Kardec vê a impossibilidade da monogenia Bíblica,
ou seja, a incapacidade de toda a humanidade ter sido originada de apenas um
casal (Adão e Eva) ou da família de Noé, após o dilúvio, e neste ponto Kardec
estava correto, pois as teorias mais recentes, como nós vimos, apontam para a
descendência do Homo sapiens de grupos
africanos e não de um único casal.
Entretanto, podemos vislumbrar
no trecho citado por Stoll, certa dificuldade de Kardec em aceitar uma origem
única, num sentido mais amplo, quando Kardec escreve:
Tão
pouco admissível é semelhante metamorfose, quanto à hipótese de uma origem
comum para o lobo e o cordeiro, para o elefante e o pulgão, para o pássaro e o
peixe.
Devemos considerar que este
comentário está inserido no contexto histórico do século XIX exatamente dois
anos antes da publicação do Livro de Charles Darwin. Kardec, apesar da
amplitude de sua visão, não poderia fugir totalmente da mentalidade histórica
da sua época.
Se
o próprio Allan Kardec escreveu no Prolegômenos do Livro dos Espíritos “as notas e a forma de algumas partes da
redação constituem obra daquele que recebeu a missão de os publicar”, então,
Stoll percebeu o óbvio, encontrando um Allan Kardec histórico, em uma ou outra
observação particular, incluídas nas
Obras Básicas a título de “considerações”.
Sandra Stoll, não percebeu, ou não quis perceber, que entre os comentários de
Allan Kardec, embora importantíssimos, e o que os Espíritos disseram, existe
uma hierarquia de autoridade nem sempre visível àqueles que, interessados
muitas vezes em apenas angariar títulos acadêmicos à custa da Doutrina, não
compreendem as sutilezas que o Espiritismo pode ter.
FAUSTO FABIANO DA SILVA
Referência bibliográfica:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
STOLL, Sandra
Jacqueline. O Imaginário da Evolução:
versões de uma mesma teoria. In: Espiritismo à brasileira. 1°. ed. São
Paulo: Edusp, 2003.
ADÃO era
africano. Revista Veja, São Paulo, jun. 2003
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67 ed. São
Paulo: Lake, 2007.
BRASIL, BBC.
Pesquisa relativiza teoria do surgimento do homem na África. Disponível em <
HTTP://wwwbbc.co.uk/portuguese/ciencia/021224_homemmacacomp.shtml> Acesso em:
21 set. 2010.
O que me intriga é que os espíritos, apesar de seu conhecimento não são deterministas o suficiente ao ponto de não deixarem qualquer sombra de dúvida. Por que não o fizeram?
ResponderExcluirKardec não perguntou diretamente aos espíritos de grande conhecimento. Se fosse para fazer isto era só perguntar para o Espírito de Verdade todas as perguntas e pronto. Mas o Espiritismo não seria então diferente das religiões tradicionais que se apoiam quase exclusivamente na fé. Entretanto, não era essa a proposta dos espíritos superiores, pois o Espiritismo nasceu numa época da valorização da razão e não da fé cega e dos dogmas. Por isto, Kardec utilizou para encontrar a verdade um método chamado Controle Universal do Ensino dos Espíritos que consistia em uma análise de tudo o que vinha dos espíritos, verificando a lógica, o embasamento no conhecimento científico da época, a comparação de uma resposta com outras, a análise das respostas vindas de médiuns diferentes, a observação da resposta de diversos espíritos estando estes em vários graus de evolução, até encontrar um consenso ou uma generalidade tal que o ensino pudesse ser integrado a Doutrina dos Espíritos. Entretanto, nota-se que a generalidade que ajuda a fazer com que determinado ensino faça parte da Doutrina Espírita, não transforma este ensino em uma verdade inquestionável ou em um dogma. Tanto é assim que Kardec escreveu: Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. Esta frase revela para nós que o Espiritismo não trabalha com verdades absolutas, nem com a infalibilidade dos espíritos. Desta maneira, podemos questionar qualquer coisa, e se houver realmente equívocos, respostas mal formuladas que precise de modificação ou aprimoramento, muda-se ou aprimora-se tais coisas, ou mesmo desconsidera-se este ou aquele ensino, teoria ou opinião de Kardec e o Espiritismo continuará.
ResponderExcluirPor todas estas reflexões percebe-se que o assessoramento por parte dos espíritos superiores, que Kardec sem dúvida alguma teve, não foi completo para não descaracterizar a Doutrina. Assim, o homem deve procurar a verdade pela pesquisa e pela razão, mesmo que alguns erros possam passar.
Algumas questões, creio, foram mal respondidas, ou não completamente respondidas, mas Kardec não podia perceber isto na sua época, nem perceber que precisariam de maior investigação. Ora, se for preciso retirar um tijolo ou arrumar uma pequena parede, isto prejudica todo o edifício da Doutrina? É claro que não. É bom que se saiba que os pilares do Espiritismo continuam inalterados até hoje: Deus, justiça divina, imortalidade da alma, comunicação com os espíritos e reencarnação. Para citarmos um exemplo, os fenômenos mediúnicos não conseguem ser explicados todos como frutos da memória genética ou força da mente de alguém, sendo a hipótese dos espíritos estarem se comunicando a única que responde a todos os fenômenos de maneira satisfatória. Ou seja, nós cremos nos espíritos não porque está escrito num livro sagrado. Da mesma maneira, nós cremos em Deus não porque tal espírito falou que Ele existe, mas por satisfazer uma lógica que até hoje não foi derrubada: “Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito”.
É claro que as vezes, nos perguntamos porque os espíritos superiores deixaram passar isto ou aquilo, mas a resposta para isto é um tanto difícil porque passa pela razão própria dos Espíritos Superiores que não temos acesso. Mas a hipótese mais provável é que havia um limite para esse assessoramento para não sacralizar a doutrina descaracterizando-a. Lembremos que “o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem”.