DEUS PODE
(Publicado
no Jornal Espírita O Clarim em junho de 2011)
No livro O que é o Espiritismo de Kardec, capítulo
primeiro, O Maravilhoso e o Sobrenatural, encontramos que o sobrenatural é “tudo o que está fora das leis da Natureza”,
ou seja, com existência independente dela. A ideia que a realidade ou os
fenômenos são regidos muitas vezes pelo sobrenatural é excluída da compreensão
espírita de mundo, como fica evidente neste trecho, do mesmo livro e capítulo
já mencionados: “O
sobrenatural desaparece à luz do facho da Ciência, da Filosofia e da Razão...”. Do mesmo modo, deparamos com pensamento semelhante no
Evangelho Segundo o Espiritismo:
Para
o vulgo ignorante, todo fenômeno cuja causa é desconhecida passa por sobrenatural,
maravilhoso e miraculoso; uma vez encontrada a causa, reconhece-se que o
fenômeno, por muito extraordinário que pareça, mais não é do que aplicação de
uma lei da Natureza. Assim, o círculo dos fatos sobrenaturais se restringe à
medida que o da Ciência se alarga [1]
Como se vê, a ideia do
sobrenatural é tida como fruto da ignorância das reais causas dos fenômenos
(sempre naturais) ou também como uma fase a ser superada pelo avanço do
conhecimento humano.
É tentador encontrar a causa
desta opção pelo natural, no espírito científico do século dezenove, como se a
Doutrina Espírita fosse toda determinada por uma época. Se o Espiritismo fosse totalmente histórico, teríamos que
concordar que, se Kardec fosse mulçumano, teríamos apenas um Islamismo Segundo
o Espiritismo e não o Evangelho Segundo o Espiritismo, se Kardec nascesse na
Índia, talvez Jesus não fosse: “o mais
perfeito modelo” [2] e sim outro. O que
mostra o absurdo que é entender a Doutrina Espírita apenas pelo viés histórico/materialista.
Entretanto, não podemos
negar que o Espiritismo e o próprio Kardec receberam influência da mentalidade
histórica do seu século, porém, certos princípios da Doutrina Espírita dizem
respeito a verdades eternas, não históricas, como a Lei do Progresso, os
princípios morais, a imortalidade da alma, a reencarnação, a comunicação
mediúnica, a existência de Deus e por fim, a noção que a realidade é regida por
leis naturais e não por fatores sobrenaturais.
Podemos dizer, para sermos
justos, que o século XIX ajudou, com sua mentalidade científica, na aceitação
“de um mundo natural”, mas este princípio é próprio das verdades imutáveis do
Criador, que o Espiritismo vem revelar para aqueles que têm ouvidos para ouvir
e olhos para ver.
Esta exclusão do sobrenatural tem outra conseqüência importante, criar
uma concepção de Deus diferente do tradicional “Deus do Impossível”, largamente
utilizada nas religiões evangélicas. Aparentemente, o Deus espírita estaria em
desvantagem agindo apenas sobre as leis da natureza, mas esta desvantagem é
apenas ilusória, pois é muita pretensão acreditar conhecer todas as leis do
universo. Sobre isto, é revelador o pensamento encontrado no Livro dos Médiuns:
“Conheceis,
porventura, tão bem essas leis, que possais marcar limite ao poder de Deus?” [3]. É significativo também o trecho encontrado no Livro A
Gênese de Kardec:
Deus
não se torna menos digno da nossa admiração, do nosso reconhecimento, do nosso
respeito, por não haver derrogado suas leis, grandiosas, sobretudo, pela
imutabilidade que as caracteriza. Não se faz mister o sobrenatural, para que se
preste a Deus o culto que lhe é devido[4]
A ideia da não derrogação das leis de Deus se
dá através de um raciocínio simples encontrado outra vez no livro A Gênese de
Allan Kardec: “Deus não faz milagres, porque,
sendo, como são perfeitas as suas leis, não lhe é necessário derrogá-las” [5],
ou seja, Deus
sendo perfeito, suas leis também são, logo, Ele agiria apenas de forma natural,
mas isto como já vimos, não O diminui. Entretanto, como um dos atributos de
Deus é de ser: “absolutamente
poderoso” [6], “Ser absoluto!” [7],
ou ainda, Onipotente[8],
Deus não pode estar sujeito a nada, inclusive às Suas próprias leis, já que seu
poder é sem limites, sem restrições, caso contrário, não seria Deus. Por isto,
Allan Kardec, sabiamente, deu a entender várias vezes que, embora Deus agisse
não de maneira sobrenatural, isto não lhe tiraria o poder de fazê-lo se essa fosse Sua vontade, como fica
evidente nesta frase:
Na
acepção teológica, os prodígios e os milagres são fenômenos excepcionais, fora das
leis da Natureza. Sendo estas, exclusivamente,
obra de Deus, pode ele, sem dúvida, derrogá-las,
se lhe apraz[9] (grifos
meus)
Também no Livro A Gênese: outra
vez uma afirmação com o mesmo teor:
Mesmo, porém, que semelhante derrogação seja
possível, ter-se-á, pelo menos, de reconhecer que só ele, Deus, dispõe desse poder;[10]
(grifos meus)
E por fim na Revista
Espírita de janeiro de 1862 no item “O Sobrenatural” outra vez o mesmo tipo de
pensamento:
Mas,
ainda uma vez, não contestamos a Deus o poder de derrogar suas leis
Concluímos
então, que o caráter absoluto de Deus continua preservado na Doutrina Espírita,
e não há nenhuma contestação ao Seu poder, o que existe, é um entendimento
sobre Seu agir, entendimento este, que é importante lembrar, relativo e
limitado à nossa capacidade humana de compreendê-Lo.
FAUSTO FABIANO DA SILVA
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
KARDEC,
Allan. O que é o Espiritismo. Araras:
Ed. Instituto de Difusão Espírita.
KARDEC,
Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo.
85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São
Paulo: Ed. Lake, 2007.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 25. ed. São
Paulo: Ed. Lake, 2007.
KARDEC, Allan. A
Gênese.
KARDEC, Allan. Revista
Espírita,
janeiro de 1862.
[2]
Livro dos Espíritos, questão 625
[4] A Gênese, capítulo XIII - Caracteres
dos milagres, especificamente em O Sobrenatural e as Religiões
[5] A Gênese, subtítulo, Deus Faz
Milagres?
[6] Livro dos Espíritos, questão 1009 - Platão
[7] A Gênese, no item, A Criação
Primária
[8] Livro dos Espíritos, questão 13
[9] Encontrada
no Evangelho Segundo o Espiritismo no item, Prodígios dos Falsos Profetas
[10] Idem,
5
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