VÍNCULOS COM
O
CRISTIANISMO
(Publicado
na Revista Internacional de Espiritismo em maio de 2011)
Eu
vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão de
ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir
os orgulhosos e glorificar os justos.[1]
Esta frase do Espírito de Verdade é muito sugestiva e diz que as coisas
devem ser inseridas, interpretadas e restabelecidas, num novo e verdadeiro
sentido. E quem, senão os espíritas seriam os melhores qualificados para tal
missão? Afinal, das muitas visões de mundo que um indivíduo pode ter, a
espírita é aquela que mais se aproxima da Verdade.
Esta
nova visão espírita, mais abrangente, mais profunda, é claramente demonstrada,
por exemplo, no conceito que Allan Kardec fazia das palavras, cristão e Cristianismo.
Observemos algumas afirmações de Kardec: “Suas conseqüências morais são
todas no sentido do Cristianismo” [2], e
“A caridade é, em tudo, a regra de proceder a que obedecem. São os verdadeiros
espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos” [3] e
finalmente neste trecho: “... surge uma nova geração, cujas crenças serão
fundadas no Espiritismo cristão”.[4]
Será que Kardec utilizou, nas frases
mencionadas, o termo “cristão” e “Cristianismo” no sentido tradicional do
termo, ou seja, vinculados a teologia cristã encontradas comumente nas
religiões evangélicas? É claro que não, pois na Doutrina Espírita não há a
crença, por exemplo, em Adão e Eva, Dilúvio, Batismo, Santíssima Trindade,
Juízo Final, Inferno e Penas Eternas. O que nos leva para a conclusão da
construção de um conceito próprio, derivado da concepção espírita da realidade.
Não se trata de inventar um conceito do nada, mas pinçar as partes, que para os
espíritas, são fundamentais.
Esta construção, de conceitos,
idéias ou valores, também é encontrada em outros autores espíritas, como Leon
Denis. No seu livro “Cristianismo e Espiritismo”, por exemplo, encontramos a
palavra, “cristãos”, desvinculada claramente de questões teológicas. Vejamos: “todos
os que amam a Humanidade podem dizer-se cristãos, mesmo quando se achem
divorciados da tradição de todas as igrejas”.[5]
Para Allan Kardec, Leon Denis e para todo verdadeiro
espírita, ser cristão é quem pratica a caridade, ou quem ama o próximo,
reduzindo o Cristianismo a sua parte moral. Sobre isto é bom lembrar o filósofo
José Herculano Pires:
Ou voltamos à simplicidade lógica e à pureza
espiritual do Cristianismo do Cristo ou teremos de voltar à selva para
recomeçar a experiência falida de dois mil anos de sofismas, vaidade e ganância
desenfreada[6]
Conclui-se que os espíritas e
a Doutrina Espírita são cristãos somente quando se abandona antigos conceitos e
se assume a responsabilidade em dar ares novos a velhas estruturas de
pensamento, como fica evidente outra vez nesta frase de José Herculano Pires:
Em conseqüência, leis e perspectivas novas
aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo
de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica
entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho do Cristo e nas obras de
Kardec.[7]
A constatação que o próprio Allan Kardec
tenha denominado o Espiritismo e os espíritas de cristãos, é importante para
fazer frente a afirmações como esta, retirada de uma revista de circulação nacional
e até apoiada por alguns espíritas.
O Espiritismo não é uma religião “cristã”, diz
Antonio Flávio Pierucci, professor do Departamento de Sociologia da
Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores estudiosos da religiosidade
brasileira. “Os espíritas utilizam o Cristianismo para se legitimarem.”
Pierucci vai mais longe. Afirma que esse vínculo com a Igreja Católica pregado
pelos espíritas serviu, durante décadas, para lutar contra a discriminação: “O
Espiritismo faz força para não parecer uma religião exótica.[8]
Observamos que este professor, apesar de ser
um grande estudioso da religiosidade brasileira, parece não ter a noção que, através do estudo do Espiritismo nós
resgatamos o verdadeiro entendimento do que seja cristão: aquele que ama a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. A falta de um estudo
metódico, profundo e prolongado da Doutrina Espírita põe em xeque muitas vezes,
a autoridade das teses e afirmações de origem acadêmica.
Há de perguntar se o próprio Kardec (que não
era brasileiro) estava só querendo legitimar a Doutrina quando escreveu tantas
vezes a palavra: “cristão e Cristianismo”. Fica claro que o vínculo com o Cristianismo é inerente a
Doutrina Espírita e não foi uma invenção dos espíritas para lutar contra a
discriminação.
O vínculo com Jesus, na Doutrina
Espírita, não depende deste ou daquele movimento espírita, para termos uma
ideia, encontramos 587 palavras “Jesus” e 217 palavras “Cristo” nas Obras
Básicas totalizando 804 referências a este espírito, assim distribuídas:[9]
OBRAS BÁSICAS
|
JESUS
|
CRISTO
|
TOTAL
|
Livro dos Espíritos
|
44
|
23
|
67
|
Livro dos Médiuns
|
20
|
13
|
33
|
O Céu e o Inferno
|
34
|
25
|
59
|
Evangelho S. Esp.
|
258
|
103
|
361
|
A Gênese
|
231
|
53
|
284
|
TOTAL
|
587
|
217
|
804
|
Notamos, observando a tabela, que a Doutrina
Espírita está irremediavelmente ligada a Jesus e que Allan Kardec e os próprios
Espíritos Superiores não o dispensaram como, equivocadamente, fazem alguns
espíritas hoje em dia, para tentar resolver problemas no movimento espírita, a
saber: a redução do Espiritismo a um evangelismo místico, com pouco espaço para
as obras de Kardec e muitas vezes com assuntos estranhos a Codificação. Estes
espíritas acertam na localização do problema, mas erram na administração do
remédio. Ora, se há o perigo, dizem, do Espiritismo, com Jesus, se tornar
apenas mais uma religião, por outro lado, sem Jesus e o aspecto religioso da Doutrina,
há um risco ainda maior, o da Doutrina Espírita se tornar apenas mais uma
Filosofia, entre muitas que empoeiram as bibliotecas, restritas a um mundo
acadêmico.
Mesmo para aqueles que se apegam ao conceito
de Cristianismo caracterizado por dogmas e formas exteriores de culto, um fato
inegável é ser a figura de Jesus, obrigatória, tanto para o Cristianismo como
para o Espiritismo (cada um por suas próprias razões) revelando por isto algo
em comum, um vínculo. Digo obrigatória, pois, sendo Jesus, “o mais perfeito modelo”, (L.E pergunta
625) isto já lhe dá um caráter não
opcional, não é por acaso, então, encontrarmos tantas referências a Jesus Cristo
nas Obras Básicas.
Nós somos livres para decidir. Assim, podemos
optar pelo mesmo pensamento de Kardec, em conformidade com o Espírito de
Verdade, e afirmar que a Doutrina Espírita é cristã, subentendido a roupagem
que o Espiritismo dá a esta palavra quando resgata seu sentido original e mais
verdadeiro, ou afirmar que a Doutrina Espírita não é cristã e nem tendo com o
Cristianismo nenhum vínculo. Se optarmos pela segunda alternativa, estaremos negando
a nossa responsabilidade como agentes de transformação, se aliando a conceitos que
nos vem de fora, esclerosados pelo tempo, acorrentados pelo peso das tradições
humanas. Que pena.
FAUSTO
FABIANO DA SILVA (pesquisador espírita em Londrina – Paraná)
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São
Paulo: Ed. Lake, 2007.
KARDEC,
Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo.
85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.
KARDEC,
Allan. O que é o Espiritismo.
Araras: Ed. Instituto de Difusão Espírita.
KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 25. ed. São
Paulo: Ed. Lake, 2007.
KARDEC, Allan. O Espiritismo em sua versão mais simples. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/19473507/o-Espiritismo-Em-Sua-Expressao-Mais-Simples> Acesso em 14 de março de 2011.
DENIS, Leon. Cristianismo e Espiritismo. Disponível em: <http://www.luzespirita.com/livros/leondenis/cristianismoeespiritismo.pdf.> Acesso em :14 de março de 2011.
PIRES, J. Herculano. Revisão do Cristianismo. Disponível em:
<http://www.espirito.org.br/portal/download/pdf/revisao-do-cristianismo.pdf
> Acesso em 14 de março de 2011
PIRES, J. Herculano. Espiritismo Dialético. Disponível em:
<http://www.bvespirita.com/Espiritismo%20Dial%C3%A9tico%20%28Jos%C3%A9%20Herculano%20Pires%29.pdf> Acesso em 14 de março de 2011
SUPER INTERESSANTE. Espiritismo. São Paulo: Editora Abril,
númer
[2] Allan Kardec. O Que é o Espiritismo, capítulo
primeiro, pequena conferência espírita
[3]
Allan Kardec. Livro dos Médiuns, primeira Parte, Cap. III – Do Método – Item 28, 3.
[4] Allan Kardec. O Espiritismo em Sua Versão Mais Simples,
resumo do ensinamento dos espíritos
[5] Leon Denis. Cristianismo e Espiritismo, conclusão.
[6]
José Herculano Pires. Revisão do Cristianismo, capítulo: a herança mágica.
[7]
José Herculano Pires. Espiritismo Dialético, o velho e o novo.
[8]
Revista Super Interessante da Editora Abril, edição 180 de setembro de 2002.
[9]
Contagem feita por mim tendo por base as Obras Básicas disponíveis no site da
FEB. As Obras Básicas estão no programa Adobe Reader, o que facilitou em muito
a localização das palavras. Os índices e as notas de rodapé foram desconsiderados
na contagem. Quando do aparecimento das palavras “Jesus Cristo” juntas, contou-se
apenas uma delas. Se houve algum erro de contagem, foi mínimo, além do mais, se
formos incluir as palavras, “cristão”, “cristianismo”, “mestre”, “messias” e
referências indiretas a Jesus como “amor ao próximo” e “evangelho” seria bem
mais que 804 menções a Jesus Cristo.
Perfeito sua colocação! Encontrei essa publicação devido ao comentário do professor da USP.
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