sábado, 5 de setembro de 2015

Da proibição Bíblica para quem consulte os mortos

                                                      DA PROIBIÇÃO BÍBLICA
                                             PARA QUEM CONSULTE OS MORTOS
                   
                                             (Publicado na RIE de setembro de 2015)


               Para começar a responder qualquer crítica contra o Espiritismo quando esta crítica envolve a citação de um livro considerado sagrado por uma comunidade religiosa, devemos lembrar qual é a base da autoridade da Doutrina Espírita. Primeiramente vem da razão: "ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom-senso, com uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada, por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura" (1). Depois, do ensino dos Espíritos, passado por certos critérios, explicados nesta frase de Kardec: Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares (2). Portanto, criticar a Doutrina Espírita citando textos religiosos, no caso em questão a Bíblia, não faz nenhum sentido para os espíritas, pois o Espiritismo não se baseia na Bíblia e sim na razão e no Ensino dos Espíritos. Entretanto, algumas pessoas poderiam acreditar que a Doutrina Espírita se basearia na Bíblia ou teria este livro como referência, já que existe o Evangelho Segundo o Espiritismo entre os livros publicados por Kardec. Esta ideia não é correta, já que foram os Espíritos da Codificação que citaram Jesus e revelaram como verdadeira a sua moral: “Os Espíritos vêm não só confirmá-la, mas também mostrar-nos a sua utilidade prática” (3), e é por causa disto que o olhar espírita se voltou para os evangelhos, e não porque eles estavam na Bíblia. Desta maneira, compreende-se por que o terceiro livro da Codificação é o Evangelho Segundo o Espiritismo e não o Espiritismo segundo os Evangelhos, muito menos o Espiritismo segundo a Bíblia. E a reflexão exposta até aqui serve de resposta a qualquer indagação sobre divergências entre a Bíblia e o Espiritismo ou entre este e a Teologia Cristã.
               Todo espírita deve saber que a Doutrina Espírita tem vocação pela verdade, encontre-se ela onde estiver. Desta maneira, podemos citar qualquer trecho, de qualquer livro, desde que se entendam estes trechos ou capítulos como verdadeiros ou de interesse doutrinário. Caem por terra, portanto, as críticas contumazes de que o Espiritismo pegaria apenas o que lhe interessa da Bíblia e deixaria o resto. Ora, se o Espiritismo se baseasse na Bíblia e principalmente na Teologia Cristã, esta crítica teria razão de ser, mas a Doutrina Espírita se baseia na razão, no bom senso e na instrução dos Espíritos, de modo que não há nenhuma contradição em  encontrar referências evangélicas nas Obras Básicas e ao mesmo tempo afirmar o equívoco de determinadas passagens. Dentre estas últimas, tomemos por exemplo Eclesiastes 9:5, muito usada para negar a comunicação mediúnica com aqueles que já morreram: “Por que os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento”.
                 Todo espírita também deve saber que a Doutrina Espírita não está numa posição de inferioridade em relação à Teologia Cristã, por isto os espíritas não precisam correr para dar explicações sobre esta ou aquela passagem bíblica que em tese estaria em desacordo com o Espiritismo. Ora, se as explicações existem é por um motivo mais profundo, revelado neste magnífico trecho do Evangelho Segundo o Espiritismo: “Eu vos digo, em verdade, que são chegados os tempos em que todas as coisas hão de ser restabelecidas no seu verdadeiro sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos” (4). Por isto Kardec escreveu:“Por bem largo tempo, os homens se têm estraçalhado e anatematizado mutuamente em nome de um Deus de paz e misericórdia, ofendendo-o com semelhante sacrilégio. O Espiritismo é o laço que um dia os unirá, porque lhes mostrará onde está a verdade, onde o erro” (5).
                 Percebemos o compromisso que o Espiritismo tem com a verdade, de modo que a elucidação sobre trechos bíblicos, quando couber, será sempre do ponto de vista espírita, e não estará necessariamente em concordância com a  teologia católica ou das igrejas evangélicas. É por isto que Kardec, quando escreveu sobre a proibição de Moisés na evocação dos mortos, não se preocupou em fazer um tratado teológico, não porque não entendesse de Bíblia ou de Teologia, mas porque não era necessário. Quem tem de apresentar coerência com a Teologia Cristã são os teólogos de suas respectivas religiões, não o espírita, pois a coerência deste é com a Doutrina Espírita e não com as teologias cristã, judaica ou muçulmana  que, aliás, estão muitos longe  da concordância mútua em inúmeros aspectos. Daí ser-nos suficiente  a resposta de Kardec (6) à proibição de Moisés para quem consulte os mortos.
               A vocação pela verdade e o fato de o conhecimento espírita ter implicações ou desdobramentos que tocam grande parte das Ciências (7) levam naturalmente à compreensão espírita dos textos sagrados. Por isto, expor (8) o ponto de vista espírita, em concordância ou não com as interpretações teológicas, não é nenhum tipo de intromissão, muito ao contrário, é uma responsabilidade dos espíritas. Um louvável exemplo: temos hoje uma tradução do Novo Testamento realizada por um espírita (9). Outro: o esforço para tentar libertar as palavras hebraicas ou gregas dos seus significados teológicos tradicionais (10), adequando-as à compreensão espírita do mundo.
              A oposição ferrenha dos religiosos quando o assunto é comunicação mediúnica pode ocultar também o medo daquilo que os mortos poderiam revelar. Por exemplo, se eles começarem a falar de um Deus que não condena ninguém ao sofrimento por toda a eternidade? E se eles começarem a revelar que seremos julgados pela quantidade de amor que dermos ao nosso semelhante e não pelo nome do Deus que professamos na Terra? E se eles afirmarem que o diabo não existe e que o mal tem origem nas nossas imperfeições? E se revelarem que a Bíblia tem, sim, muitas verdades, mas os homens as distorceram em muitos pontos ou mesmo nunca a compreenderam em seu verdadeiro sentido? E se os espíritos falarem da reencarnação? E se assegurarem que Jesus é um ser cheio de glória, porém não é Deus? E se os mortos começarem a falar de um mundo espiritual, levando as pessoas a repensarem a sua fé? É assim que, para alguns, o melhor mesmo é que os mortos fiquem calados. Todavia, calar os espíritos é como desejar que as aves parem de cantar. Que o sol não nasça pela manhã. Que as flores nunca desabrochem ou ainda que as estrelas parem de brilhar. E da mesma maneira os espíritos, pertencendo irremediavelmente à realidade, não podem ser ignorados ou ocultados para sempre. Ainda bem...

(1) e (2) Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução, Autoridade da Doutrina Espírita em Controle Universal do Ensino dos Espíritos.
(3)Livro dos Espíritos, Conclusão, item XVIII.
(4)Evangelho Segundo o Espiritismo, Prefácio.
(5)Livro dos Espíritos, Conclusão, item IX.
(6) No livro O que é o Espiritismo em Pequena Conferência Espírita, Kardec escreveu: “A proibição feita por Moisés tinha então a sua razão de ser, porque o legislador hebreu queria que o seu povo rompesse com todos os hábitos trazidos do Egito, e de entre os quais o de que tratamos era objeto de abusos. Não se evocavam  então os mortos pelo respeito e afeição tributados a eles, nem com o sentimento de piedade, mas, sim, como meio de adivinhar, como objeto de tráfico vergonhoso, explorado pelo charlatanismo e pela superstição; nessas condições, Moisés teve razão de proibi-lo. (...). Mais adiante Kardec continua: “Hoje as circunstâncias são outras, e a proibição de Moisés já não tem razão de ser”. Além disso, se a Igreja proíbe a evocação dos Espíritos, poderá também impedir que eles venham sem ser chamados?”.
(7) No livro A Gênese, Capítulo I, Caráter da Revelação Espírita, item 18 encontramos: “O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do Universo, toca forçosamente na maior parte das ciências”. É assim que, o estudo através do Espiritismo do elemento espiritual, pode influenciar o conhecimento acadêmico em diversas áreas. Por exemplo, a noção que o homem é um ser espiritual que evolui trazendo tendências de vidas passadas faz que historiadores espíritas não aceitem mais ideologias materialistas como as únicas capazes de explicar na sua totalidade, os acontecimentos históricos.
(8) A exposição das ideias espíritas quando o momento ou as circunstâncias forem favoráveis deve ser sempre com atitude respeitosa, lembrando que nem todos vão concordar conosco.
(9) Novo Testamento traduzido por Haroldo Dutra Dias.
(10) No livro Analisando as Traduções Bíblicas de Severino Celestino da Silva.
 

Fausto Fabiano da Silva
faustofabianodasilva@yahoo.com.br

BIBLIOGRAFIA
KARDEC, Allan. Evangelho Segundo o Espiritismo. 85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São Paulo: Ed. Lake, 2007.
KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Araras: Ed. Instituto de Difusão Espírita.
KARDEC, Allan. A Gênese. 1ed. Rio de Janeiro: Ed. León Denis, 2008.
O Novo Testamento. Tradução de Haroldo Dutra Dias. 1. ed. Brasília: Ed. FEB, 2013.
SILVA, Severino Celestino. Analisando as Traduções Bíblicas. 6. ed. João Pessoa: Ed. Ideia, 2009.
BÍBLIA. Eclesiastes. Português. Bíblia de Estudo: Aplicação Pessoal. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e corrigida. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2003.


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