sexta-feira, 14 de setembro de 2018


A não sacralidade do conhecimento espírita



                    É de conhecimento daqueles que estudam o Espiritismo, a diferença entre a resposta 86 da primeira edição do Livro dos Espíritos e a resposta da questão 344 das edições posteriores. Na questão 86 encontramos:  “Em que momento a alma se une ao corpo? Ao nascimento” e depois continua: “Antes do nascimento a criança tem uma alma? R: Não” (1) e na questão 344: “A união começa na concepção, mas só é completa por ocasião do nascimento. Desde o instante da concepção, o Espírito designado para habitar certo corpo a este se liga por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até ao instante em que a criança vê a luz...”.
                 Vejamos que a primeira resposta, pode parecer não suficientemente clara. Provavelmente, quis dizer que a criança, antes de nascer, não tinha uma alma porque o espírito não está totalmente reencarnado, já que os laços com a matéria, nesta fase, são bastante frágeis.  Se eu entender que a criança realmente tem uma alma somente quando o processo reencarnatório se completou, então, antes de nascer, de certa forma, a criança ainda não tem uma alma. É muito mais uma questão de ponto de vista do que um erro. Porém, é inegável que a segunda resposta é melhor, porque deixa menos margem para dúvidas. 
                   Algumas pessoas podem estranhar que a melhor resposta tenha aparecido apenas na segunda edição do Livro dos Espíritos, se perguntando, o porquê, dos espíritos superiores não terem corrigido a questão desde o princípio. A dúvida se justifica, quando sabemos que a primeira edição do Livro dos Espíritos não foi um rascunho, mas um livro que contou com a revisão por parte da espiritualidade. Sobre isto, nos prolegômenos deste primeiro livro (2), encontramos o seguinte comentário dos espíritos:  “Teremos de revê-lo juntos a fim de que não encerre nada que não seja a expressão de nosso pensamento...”.            
                   Esta aparente contradição, entre a assistência dos espíritos superiores e a resposta da questão 86 já mencionada, obviamente, é usada pelos opositores do Espiritismo para tentar criar um ambiente de descrédito, ou desconfiança em relação a Doutrina Espírita. Por isto, a importância dos espíritas se posicionarem de maneira inteligente sobre o tema.
                   Primeiramente, precisamos enfrentar esta questão com tranquilidade, pois Kardec escreveu, no livro A Gênese, no capítulo primeiro, Caráter da Revelação Espírita, item 55:   Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.  Ora, se o próprio Codificador, falou com todas as letras, que poderia haver erros em um ponto qualquer, não somos nós, então, que vamos se escandalizar por isto.  Mas como pode existir erros, ou respostas que necessitem de maiores esclarecimentos, se o Livro dos Espíritos passou pelo crivo do Controle Universal do Ensino dos Espíritos mais a revisão dos espíritos superiores?
                  A resposta mais plausível é que o controle universal, como método de pesquisa, não era infalível, as diferenças entre as respostas estudadas provam esta hipótese. Como o Espiritismo tem um viés científico (3), nada mais natural, Kardec, ter pesquisado melhor a problemática da união do espírito com o corpo na ocasião da reencarnação e melhorado a resposta em edição posterior. Ao que parece, os espíritos superiores, na revisão que fizeram, respeitaram muito o papel de Kardec na produção do conhecimento espírita. Os espíritos superiores revisaram ou leram outra vez o Livro dos Espíritos antes da publicação, porém, isto se deu, obedecendo um critério principal, tanto na primeira como na segunda edição do Livro dos Espíritos e demais Obras Básicas:  não revelar o que Kardec teria que descobrir através do seu próprio trabalho. Na Doutrina Espirita, no geral, somos nós que devemos encontrar a verdade pois ela não virá de maneira passiva, ao nosso encontro.
                  Então, houve sim, um distanciamento da parte dos espíritos superiores em muitos assuntos, principalmente os de cunho técnico ou científico (4), que o homem teria que aprender a sua própria custa, por si mesmo, pela razão e pela pesquisa, por isto, a possibilidade de erros nestas áreas sejam maiores.  Sobre esse distanciamento, esta frase de Kardec do livro A Gênese, capítulo, Caráter da Revelação Espírita, item 50 e 60 respectivamente:   Os Espíritos não ensinam senão Justamente o que é mister para guiar o homem no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o que ele homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência à sua custa” e “Os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo e das pesquisas o homem, nem para lhes transmitirem uma ciência pronta. Com relação ao que o homem pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue as suas próprias forças”. Também no Livro dos Médiuns, capítulo XXVI, Sobre as invenções e descobertas, item 294 “que mérito teria ele, se não lhe fosse preciso mais do que interrogar os espíritos para saber tudo? ”. E mais adiante, ainda no Livro dos Médiuns, no capítulo XXVII, item 30, pergunta 10, uma frase do Espírito de Verdade:  “Desejais tudo obter sem trabalho. Sabei, pois, que não há campo onde não cresçam as ervas más, cuja extirpação cabe ao lavrador...”.  
                 Fica claro nestas frases a responsabilidade dos homens na produção do conhecimento. Não podemos considerar o Espiritismo uma exceção a esta postura geral dos Espíritos. Portanto, a Doutrina Espírita, teria que vir ao mundo do mesmo modo.
                   Nunca o assessoramento por parte dos espíritos superiores foi no sentido de sacralizar a Doutrina Espírita. Se isto ocorresse, nós teríamos as Obras Básicas inspiradas pelo Espírito de Verdade da mesma forma que a Bíblia é considerada inspirada pelo Espírito Santo. Se assim fosse, o Espiritismo se aproximaria por demais das correntes tradicionais do pensamento religioso, dos dogmas e da fé cega. Porém, a Doutrina Espírita teria que ter um caráter diferente, para poder dar uma resposta satisfatória aos novos paradigmas da Ciência, da Filosofia e dos costumes, apta a responder aos anseios das novas gerações. Por isto, as conclusões teriam que vir pela observação, pela análise dos fenômenos, onde o erro é admissível em algum ou outro ponto (5), onde o conhecimento espírita pudesse, se aprofundar, melhorar, e se corrigir se fosse preciso.
                  Seja qual for a revisão, assessoramento ou aproximação que os espíritos superiores tenham tido com Kardec foi sempre respeitando o fato que a elaboração do Espiritismo teria que ser “ fruto do trabalho do homem” (6). Desta maneira, os espíritos não tinham a obrigação de fazer o que era nosso trabalho. Se Kardec foi corrigido (7) em algum momento, foi por livre vontade dos Espíritos. Nós devemos respeitar o livre arbítrio dos espíritos superiores em corrigir ou não, em intervir ou não, nos trabalhos e conclusões de Allan Kardec. Pensemos.

(1)   No Francês: A quelle époque l'âme s'unit-elle au corps?  A la naissance.  — Avant sa naissance l'enfant a-t-il une âme?  Non.
(2)   Nos Prolegômenos das edições posteriores encontramos: “mas antes de o divulgares revê-lo-emos juntos, a fim de lhe verificarmos todas as minúcias.
(3)   Kardec escreveu, em Caráter da Revelação Espírita, no livro, A Gênese, que o Espiritismo é uma ciência de observação.
(4)   Exemplo de questão de cunho técnico: quanto tempo demora para o espírito deixar o corpo na morte ou em que momento o espírito se une ao corpo ao reencarnar. Exemplo de questão de cunho científico onde houve um erro:  A natureza dos cometas. Kardec no livro A Gênese, capítulo IX, em Cataclismos Futuros, item 12, escreveu que os cometas seriam fluídicos e que não causariam problemas em um eventual choque com a Terra. Este equívoco, é um exemplo de assunto de natureza científica, em que os espíritos superiores não quiseram intervir.
(5)   Todos os problemas que podemos encontrar na Doutrina Espírita são periféricos ou secundários e não tem o potencial de atingir as bases do edifício doutrinário que até hoje, permanecem bastante sólidos, pois não foram questionados de maneira satisfatória por ninguém. Exemplos destes princípios: Deus, sobrevivência da individualidade após a morte, reencarnação, comunicação mediúnica e os princípios morais.
(6)   Ler o Livro A Gênese de Kardec, capítulo um, Caráter da Revelação Espírita item 13.
(7)   Ler o Livro Obras Póstumas, na segunda parte, A Minha Primeira Iniciação ao Espiritismo em Meu Guia Espiritual.


 FAUSTO FABIANO DA SILVA
 faustofabianodasilva@yahoo.com.br
                                 
 BIBLIOGRAFIA

KARDEC, Allan. Livro dos Espíritos. Disponível em: <http://www.ipeak.net/site/upload/midia/pdf/le_livre_des_esprits_1a.ed_1857_mode_texte.pdf > Acesso em: 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. Livro dos Espíritos. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Livro-dos-Espiritos.pdf> Acesso em: 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. Livro dos Médiuns. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2014/05/Livro-dos-Mediuns_Guillon.pdf >Acesso em: 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. A Gênese. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/07/A-genese_Guillon.pdf > Acesso em 26 de junho de 2018.

KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Disponível em: < http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/07/139.pdf > Acesso em 26 de junho de 2018.