sábado, 5 de abril de 2014

A Poligenia e o Espiritismo



                                                         A POLIGENIA E O ESPIRITISMO

                                     (Publicado na Revista Internacional de Espiritismo em nov. de 2010)


                   Segundo o dicionário de Filosofia de Nícola Abbagnano, a doutrina para a qual todas as raças humanas vivas descendem de um único ramo, se chama monogenismo, e a doutrina contrária chama-se poligenismo.
       O monogenismo está de acordo com as teorias mais aceitas atualmente sobre a origem comum dos seres humanos, ou seja, nós seríamos, todos, descendentes de populações africanas que se espalharam pelo mundo. Por exemplo, em reportagem de título “Adão era africano” da Revista Veja de junho de 2003, nós extraímos a seguinte frase: “A contribuição mais importante do Homo sapiens idaltu é reforçar a concepção de que o homem surgiu na África e de lá partiu para a conquista de outros continentes”. Por sua vez, o poligenismo, defende que o homem originou-se de espécies biológicas separadas, com origens diferentes, independente entre si, sem laços de parentesco.
        Estudando o Espiritismo mais profundamente, verificamos que este caminha no sentido do monogenismo. Vejamos algumas questões do Livro dos Espíritos que comprovam esta interpretação, advertindo o leitor que não tire conclusões precipitadas antes de ler todo o texto.
                     53. O homem surgiu em muitos pontos do globo?
“Sim e em épocas várias, o que também constitui uma das
causas da diversidade das raças. Depois, dispersando-se os
homens por climas diversos e aliando-se os de uma aos de
outras raças, novos tipos se formaram.”

a)      — Estas diferenças constituem espécies distintas?

“Certamente que não; todos são da mesma família. Porventura
as múltiplas variedades de um mesmo fruto são motivo
para que elas deixem de formar uma só espécie?
       
        Percebe-se que uma leitura da primeira parte da resposta da questão 53 nos remeteria a visão poligênica, mas para entendermos realmente, devemos compreender a resposta toda, inclusive a questão, 53 “a”, senão, correremos o risco de ficar na tentadora superficialidade das coisas.
                  Se nós dispuséssemos apenas da informação que o homem surgiu em vários lugares, isso seria poligenia, mas devemos notar que na questão 53 “a” existe a expressão “de uma mesma família”, e para que não houvesse dúvidas, a complementação:  “Porventura as múltiplas variedades de um mesmo fruto são motivo para que elas deixem de formar uma só espécie?”, portanto, é inequívoca a idéia que os homens descendem um dos outros, independente da variação dos aspectos exteriores, e isto é monogenia, que foi tão bem explicada na linguagem figurada da diversidade dos frutos, que nos envia a idéia da diversidade do homens: negros, brancos, indígenas, altos, magros, com cabelos enrolados ou lisos, com olhos azuis ou pretos, todos, da mesma espécie, da espécie humana.
                   Se os homens descendem uns dos outros, e como dizem os espíritos, se surgiram  em vários pontos do globo,  somente existe um jeito para isto acontecer:  por migração.
                 A ideia das migrações humanas primordiais da África para outras regiões do mundo é atualíssima. Esqueletos de Homo erectus e heidelbergensis, foram encontrados na África, Europa e na Ásia. E não viveram necessariamente numa mesma época, o Homo hábilis, por exemplo, é bem anterior ao outros dois ancestrais mencionados.
                 Uma teoria (hipótese multirregional) relata que os Homo sapiens vindos da África que se espalharam pelo mundo não eliminaram por completo os hominídeos que já estavam fora da África, saídos deste continente por migrações ainda mais antigas. Teria havido um cruzamento de espécies, contribuindo para a formação do genoma humano atual. Por isto, a resposta dos espíritos “dispersando-se os homens por climas diversos e aliando-se os de uma aos de outras raças, novos tipos se formaram” talvez seja mais atual que pensamos.
                   Vamos analisar agora a questão 690 do Livro dos Espíritos:
              
690. Do ponto de vista físico, são de criação especial os corpos
 da raça atual, ou procedem dos corpos primitivos,
mediante reprodução?

“A origem das raças se perde na noite dos tempos. Mas, como pertencem todas à grande família humana, qualquer que tenha sido o tronco de cada uma, elas puderam aliar-se entre si e produzir tipos novos” (Grifos meus)

                   Observemos as palavras, família e tronco, família lembra descendência e tronco lembra árvore e suas ramificações. Vários troncos que se reúnem por sua vez em troncos maiores e estes por fim formam a grande árvore genealógica da espécie humana. Como se vê, antecipando mesmo Charles Darwin, o Livro dos Espíritos de 1857, nos dá a visão da origem comum das espécies.
                  Perguntamos então, como a Doutora Sandra Jacqueline Stoll, em seu livro Espiritismo à Brasileira, pode escrever que, no Livro dos Espíritos, a “idéia de uma origem comum a todas as raças humanas, tese defendida pelos monogenistas, não se coloca”? Vamos analisar agora até que ponto os argumentos desta autora tem fundamentação.
                          
                    Para afirmar que a Doutrina Espírita absorveu a poligenia, a autora usa um trecho de Allan Kardec, que se encontra no Livro dos Espíritos:
“o exame fisiológico demonstra haver, entre certas raças, diferenças constitucionais mais profundas do que as que o clima é capaz de determinar. O cruzamento das raças dá origem aos tipos intermediários. Ele tende a apagar os caracteres extremos, mas não os cria; apenas produz variedades. Ora, para que tenha havido cruzamento de raças, preciso era que houvesse raças distintas. Como, porém, se explicará a existência delas, atribuindo-se-lhes uma origem comum e, sobretudo, tão pouco afastada? Como se há de admitir que, em poucos séculos, alguns descendentes de Noé se tenham transformado ao ponto de produzirem a raça etíope, por exemplo? Tão pouco admissível é semelhante metamorfose, quanto a hipótese de uma origem comum para o lobo e o cordeiro, para o elefante e o pulgão, para o pássaro e o peixe. Ainda uma vez: nada pode prevalecer contra a evidência dos fatos. Tudo, ao invés, se explica, admitindo-se: que a existência do homem é anterior à época em que vulgarmente se pretende que ela começou; que diversas são as origens”

                  O texto mencionado está inserido num capítulo chamado “Considerações e Concordâncias Bíblicas Concernentes à Criação, onde Kardec vê a impossibilidade da monogenia Bíblica, ou seja, a incapacidade de toda a humanidade ter sido originada de apenas um casal (Adão e Eva) ou da família de Noé, após o dilúvio, e neste ponto Kardec estava correto, pois as teorias mais recentes, como nós vimos, apontam para a descendência do Homo sapiens de grupos africanos e não de um único casal.
                  Entretanto, podemos vislumbrar no trecho citado por Stoll, certa dificuldade de Kardec em aceitar uma origem única, num sentido mais amplo, quando Kardec escreve:

Tão pouco admissível é semelhante metamorfose, quanto à hipótese de uma origem comum para o lobo e o cordeiro, para o elefante e o pulgão, para o pássaro e o peixe.

                Devemos considerar que este comentário está inserido no contexto histórico do século XIX exatamente dois anos antes da publicação do Livro de Charles Darwin. Kardec, apesar da amplitude de sua visão, não poderia fugir totalmente da mentalidade histórica da sua época.
                   Se o próprio Allan Kardec escreveu no Prolegômenos do Livro dos Espíritos “as notas e a forma de algumas partes da redação constituem obra daquele que recebeu a missão de os publicar”, então, Stoll percebeu o óbvio, encontrando um Allan Kardec histórico, em uma ou outra observação particular, incluídas nas Obras Básicas a título de “considerações”. Sandra Stoll, não percebeu, ou não quis perceber, que entre os comentários de Allan Kardec, embora importantíssimos, e o que os Espíritos disseram, existe uma hierarquia de autoridade nem sempre visível àqueles que, interessados muitas vezes em apenas angariar títulos acadêmicos à custa da Doutrina, não compreendem as sutilezas que o Espiritismo pode ter.        
                  


FAUSTO FABIANO DA SILVA



Referência bibliográfica:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
STOLL, Sandra Jacqueline. O Imaginário da Evolução: versões de uma mesma teoria. In: Espiritismo à brasileira. 1°. ed. São Paulo: Edusp, 2003.
ADÃO era africano. Revista Veja, São Paulo, jun. 2003
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 67 ed. São Paulo: Lake, 2007.
BRASIL, BBC. Pesquisa relativiza teoria do surgimento do homem na África. Disponível em < HTTP://wwwbbc.co.uk/portuguese/ciencia/021224_homemmacacomp.shtml> Acesso em: 21 set. 2010.

2 comentários:

  1. O que me intriga é que os espíritos, apesar de seu conhecimento não são deterministas o suficiente ao ponto de não deixarem qualquer sombra de dúvida. Por que não o fizeram?

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  2. Kardec não perguntou diretamente aos espíritos de grande conhecimento. Se fosse para fazer isto era só perguntar para o Espírito de Verdade todas as perguntas e pronto. Mas o Espiritismo não seria então diferente das religiões tradicionais que se apoiam quase exclusivamente na fé. Entretanto, não era essa a proposta dos espíritos superiores, pois o Espiritismo nasceu numa época da valorização da razão e não da fé cega e dos dogmas. Por isto, Kardec utilizou para encontrar a verdade um método chamado Controle Universal do Ensino dos Espíritos que consistia em uma análise de tudo o que vinha dos espíritos, verificando a lógica, o embasamento no conhecimento científico da época, a comparação de uma resposta com outras, a análise das respostas vindas de médiuns diferentes, a observação da resposta de diversos espíritos estando estes em vários graus de evolução, até encontrar um consenso ou uma generalidade tal que o ensino pudesse ser integrado a Doutrina dos Espíritos. Entretanto, nota-se que a generalidade que ajuda a fazer com que determinado ensino faça parte da Doutrina Espírita, não transforma este ensino em uma verdade inquestionável ou em um dogma. Tanto é assim que Kardec escreveu: Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará. Esta frase revela para nós que o Espiritismo não trabalha com verdades absolutas, nem com a infalibilidade dos espíritos. Desta maneira, podemos questionar qualquer coisa, e se houver realmente equívocos, respostas mal formuladas que precise de modificação ou aprimoramento, muda-se ou aprimora-se tais coisas, ou mesmo desconsidera-se este ou aquele ensino, teoria ou opinião de Kardec e o Espiritismo continuará.
    Por todas estas reflexões percebe-se que o assessoramento por parte dos espíritos superiores, que Kardec sem dúvida alguma teve, não foi completo para não descaracterizar a Doutrina. Assim, o homem deve procurar a verdade pela pesquisa e pela razão, mesmo que alguns erros possam passar.
    Algumas questões, creio, foram mal respondidas, ou não completamente respondidas, mas Kardec não podia perceber isto na sua época, nem perceber que precisariam de maior investigação. Ora, se for preciso retirar um tijolo ou arrumar uma pequena parede, isto prejudica todo o edifício da Doutrina? É claro que não. É bom que se saiba que os pilares do Espiritismo continuam inalterados até hoje: Deus, justiça divina, imortalidade da alma, comunicação com os espíritos e reencarnação. Para citarmos um exemplo, os fenômenos mediúnicos não conseguem ser explicados todos como frutos da memória genética ou força da mente de alguém, sendo a hipótese dos espíritos estarem se comunicando a única que responde a todos os fenômenos de maneira satisfatória. Ou seja, nós cremos nos espíritos não porque está escrito num livro sagrado. Da mesma maneira, nós cremos em Deus não porque tal espírito falou que Ele existe, mas por satisfazer uma lógica que até hoje não foi derrubada: “Todo efeito tem uma causa. Todo efeito inteligente tem uma causa inteligente. O poder da causa inteligente está na razão da grandeza do efeito”.
    É claro que as vezes, nos perguntamos porque os espíritos superiores deixaram passar isto ou aquilo, mas a resposta para isto é um tanto difícil porque passa pela razão própria dos Espíritos Superiores que não temos acesso. Mas a hipótese mais provável é que havia um limite para esse assessoramento para não sacralizar a doutrina descaracterizando-a. Lembremos que “o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração fruto do trabalho do homem”.


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