A universalidade da prece
(publicado no Jornal Espírita O Clarim em junho de 2018)
No Espiritismo, a prece tem um caráter de
adoração (1). E adorar é elevar nosso pensamento a Deus. Porém, em nenhum momento sequer, os Espíritos
da Codificação e nem Allan Kardec, afirmaram que a prece teria valor se fosse
proferida somente por este ou aquele círculo de fé. Desta maneira, para Deus,
segundo o entendimento espírita, a prece do católico, do evangélico, do judeu,
do muçulmano, do hindu, do espírita, ou de qualquer outro, são igualmente
válidas.
Se todas as preces são válidas, não nos é
estranho, por isto, sendo fácil de aceitar também, que alguém não espírita faça
uma oração por nós. Porque, não importa quem
esteja fazendo a prece ou a quem a prece é dirigida, mas o que está no coração
daquele que ora. Isto é tão verdade que todos têm a intuição que é melhor pedir
uma prece a uma pessoa boa do que a um assassino (2). Ou seja, temos por certo, mesmo que
veladamente, que é o nível moral das pessoas, independente da sua crença, uma
das coisas que influencia a intimidade do indivíduo com Deus e por sua vez a
eficácia da sua prece e não o nome da fé que professe e muito menos os bens materiais
que possua.
Na Doutrina Espírita, a
verdadeira prece está sempre no coração e não nas palavras. No Livro dos
Espíritos, por exemplo, nas questões 658 e 662 encontramos algumas frases neste
sentido, respectivamente: “A prece é
sempre agradável a Deus, quando ditada pelo coração, pois, para Ele, a intenção
é tudo” e “ Mas, ainda aqui, a prece do coração é tudo, a dos lábios nada vale”.
Se a prece verdadeira nasce
no coração é justamente este fato que dá a ela a universalidade, pois qualquer
um pode, em algum momento, desejar ardentemente elevar seu pensamento ao
Criador, cada um à sua maneira, cada um conforme a sua fé.
Porém, se para o espírita, a universalidade da
prece é óbvia, isto nem sempre é visto com naturalidade por algumas pessoas,
pois as crenças teológicas podem dificultar tal compreensão. Por exemplo, os
convertidos a determinada fé, que julgam ser a mais verdadeira, podem acreditar
por isto, estarem mais aptos, mais preparados, ou se sentirem pessoas melhor
qualificadas para orar do que os outros não convertidos. No entanto, para o
Espiritismo não há pessoas de segunda classe: os não convertidos, os ímpios, os não salvos,
os não batizados, os não separados, pois todos nós sem exceção, somos filhos de
Deus, todos nós temos a mesma natureza intrínseca, e o que há de diferente
entre as pessoas são os diversos graus de desenvolvimento ou a evolução
intelecto moral que o indivíduo apresente naquele momento. É como os alunos de
uma escola, alguns estão no primeiro ano enquanto outros estão mais adiantados,
porém, todos são alunos. Desta maneira, uma prece de um indígena aos espíritos da
floresta tem o mesmo valor de uma oração para Jesus. Pois, sendo Deus justo,
sempre leva em consideração nossa capacidade de compreender o mundo. Qualquer
Teologia que ensine um Deus insensível e intolerante as diversas maneiras de
entender o sagrado, estará equivocada em algum ponto.
Se Deus
compreende as diversas manifestações do sagrado e por sua vez a prece originada
de cada contexto de fé, por outro lado, não quer que seus filhos fiquem para
sempre cultivando ideias afastadas da verdade. É por isto que existe a Lei do
Progresso (3) para que os conceitos, juízos ou opiniões sejam cada vez mais
condizentes com as Leis Divinas e aos poucos, aceitas pela maioria das pessoas,
e por fim, por todos, num longo processo histórico reencarnacionista que tem a
finalidade última uma sociedade terrena, mais feliz, harmônica e justa.
Observamos até aqui, que o acreditar-se
mais digno para orar somente porque o indivíduo professa determinada fé ou por
que está fé lhe dá uma sensação de ter algo especial que os não convertidos não
têm, dificulta a ideia da universalidade da prece. Podemos acrescentar a esta dificuldade,
tornando a universalidade ainda mais difícil de ser percebida, a redução da
oração a um simples instrumento para legitimação da superioridade da minha fé
em relação a dos outros. Se vou orar por alguém é porque o meu Deus é melhor, é
mais poderoso que o da outra pessoa. Já vou orar com ares de quem está acima,
como quem diz: você tem sua fé, mas na hora do aperto, pediu para eu orar. É
como se o pedido da prece já fosse um reconhecimento do fracasso da fé
individual em relação a do outro que ora. Porém, para quem entente a
universalidade da prece, nada mais enganoso que este tipo de raciocínio.
A universalidade da prece
também perde o encanto quando quem ora, deseja em segredo, converter a outra
pessoa. Vou orar, porém, isto é uma tática para que no futuro a pessoa a quem
oro abandone sua crença individual e adote a minha. A prece que deveria ser
fruto do amor a todas as pessoas, passa a ser apenas uma estratégia de
convencimento e aproximação religiosa. Em outras palavras, vou orar, já com
segundas intenções.
Aceitar
a universalidade da prece, é aceitar a ação divina sobre todo o mundo, sobre
todas as pessoas. As curas, os chamados livramentos dos perigos, as superações
morais, não acontecem apenas nesta ou naquela fé, mas ao contrário, todos têm
exemplos de benefícios conseguidos através das mais variadas manifestações de
crença. Pois que Deus, ou os espíritos superiores em Seu nome, podem agir onde
quiserem já que a soberania e o poder do Criador são absolutos. Então, porque
alguns torcem o nariz quando ouvem um católico falar que recebeu tal graça
através da oração a Virgem Maria? E
porque então outros torcem o nariz também, quando acredito alcançar alguma
coisa boa através da oração de um espírita? É que o preconceito religioso e as
crenças teológicas que tornam Deus de uso exclusivo de determinados grupos
formam uma barreira intransponível na mentalidade atual de certos espíritos
encarnados, o que apenas se modificará com o tempo nas sucessivas
reencarnações.
Devemos entender, que a prece
que é universal não se julga a única a dar a vitória, ou a cura a quem quer que
seja. Se há pessoas de diversas crenças orando por alguém, a prece universal
não se acredita a mais importante. Sabe que todas as orações, direcionadas para
o bem e vindas do coração, podem trazer algum benefício para aquele que
necessita. A prece universal é por amor e não para fazer propaganda de igreja
ou da minha fé. A verdadeira prece sabe que o mais importante é amar e não
somente crer. Pois muitos podem crer nisto ou naquilo, inclusive as pessoas de
má índole, mas poucos realmente amam.
Quando resolvemos orar, algo de extraordinário
acontece. Todo um paradigma materialista que estava impregnado no tecido
cultural e por sua vez nos influenciando, cai por terra. O indivíduo, não mais
somente um amontoado de carne e ossos, desperta a sua dimensão espiritual
latente, calada, sufocada até então, pelo peso da materialidade da vida
imediata, pelas aparências da carne e deste mundo transitório, enfim, começa a
se libertar. Por isto, falar em
Espiritismo é falar na perspectiva da liberdade, pois enquanto alguns
aprisionam Deus, a Doutrina Espírita O liberta. O cárcere divino pode ser
observado na frase popular bastante conhecida que diz: “o diabo também cura”.
Argumento para justificar as coisas boas que porventura o indivíduo alcance
fora desta ou daquela igreja. A ação divina acaba virando estratégia de
marketing para encher determinados templos religiosos. Já no Espiritismo, a
ação de Deus e de seus emissários se estende por todas as crenças e igrejas,
por todos os indivíduos. Desta maneira, se alguém não espírita relata que
recebeu uma cura fora do contexto espírita, isto não será motivo de estranhamento,
pois Deus pode agir em qualquer igreja ou templo, mesmo que fora do
Cristianismo. Por isto a prece é mais universal do que alguns acreditam.
(1) ler a questão
659 do Livro dos Espíritos de Kardec.
(2) ler o
Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XXVII, item 13.
(3) ler o Livro
dos Espíritos, capítulo VIII – Da Lei do Progresso.
Fausto Fabiano da
Silva
faustofabianodasilva@yahoo.com.br
Bibliografia
KARDEC,
Allan. O Livro dos Espíritos. 67. ed. São Paulo: Ed.
Lake, 2007.
KARDEC, Allan. Evangelho Segundo o
Espiritismo. 85. ed. Rio de Janeiro: Ed. FEB, 1982.
Muito esclarecedor.
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